domingo, 16 de março de 2014

Magna acessibilidade

No último dia 14 de março ocorreu a Aula Magna da UFRGS, tendo o famoso fotógrafo Sebastião Salgado como ministrante. É sempre bom quando a universidade possibilita à comunidade acadêmica oportunidades dessa magnitude, que além de agregar conhecimento para a profissão, são fundamentais para o crescimento pessoal de todos que podem estar presente. Mas, infelizmente, nem todos puderam ter acesso pleno a esse evento tão grandioso.
Alguns amigos com deficiência, colegas e até ex-alunos me perguntaram o que eu achava de não haver audiodescrição no evento. Primeiro que fiquei feliz em ser questionado sobre o fato, pois isso demonstra que já há bastante gente consciente da necessidade desse recurso para que o público com deficiência visual possa acompanhar em igualdade de condições os eventos da universidade. Segundo, como vocês sabem eu estou em Barcelona e por isso não pude responder a essa pergunta diretamente.
Soube que houve a tradução da palestra para Libras, o que eu considero muito importante. Não sou daqueles que só luta em causa própria, embora eu não seja surdo, fico feliz quando suas especificidades são contempladas, e inclusive luto por elas quando possível. Da mesma forma, espero que proximamente haja união entre os diversos movimentos sociais dentro da universidade, para que os direitos das pessoas com deficiência visual também sejam contemplados.
Os questionamentos que me trouxeram as pessoas que referi me fizeram refletir sobre muita coisa, e antes que me digam que esse é um fato isolado e pequeno perto de outros maiores, eu retruco dizendo que é a gota do copo repleto de água. O problema não é a inexistência de audiodescrição nos eventos oficiais da universidade, mas sim, as justificativas que, vivendo e estudando em outra cidade, eu percebo ainda mais rasas do que imaginava quando vivia em Porto Alegre.
Querendo ou não, estudando na Universitat Autonoma de Barcelona, descobri que todo tipo de acessibilidade que me diziam ser “impossível” aqui são efetuadas com naturalidade inquestionável. Então, porque não houve audiodescrição no evento e na exposição do fotografo?
Não sei exatamente os motivos, mas algumas coisas mesmo de longe é possível problematizar. Certamente, pró-reitorias e departamentos envolvidos sabiam que essa aula e a exposição de Sebastião salgado fariam parte da programação desse ano, assim como há aulas inaugurais todos os anos. Sabendo disso, porque então não pensar em prover acessibilidade plena no evento? Existiu tempo hábil para pensar nessa questão, bem como o recurso de audiodescrição não é tão desconhecido assim da universidade, afinal, ano passado foi feita uma formatura com esse recurso.
Contudo, a referida formatura foi feita buscando suprir uma demanda individual de uma aluna, que tinha uma irmã com baixa visão. E eis o problema que também é um entrave para a sistematização da acessibilidade plena na universidade, a individualização das ações. Não há planejamento estratégico para a implantação dessas necessidades. Todas as iniciativas ainda ocorrem por projetos e solicitações de cada sujeito.
Se um aluno precisa do recurso, ás vezes ele é provido, se um servidor leva adiante um projeto de acessibilidade o comando do mesmo fica apenas em suas mãos e caso ele decida optar por outros caminhos, as atividades cessam e retornamos à estaca zero. E quando as ações são pessoalizadas e esporádicas elas não ficam raízes e não criam uma cultura na instituição, que é exatamente do que precisamos.
Para ser coerente com o que estou dizendo, minha reflexão e minha critica não tem um tom de individualizar o que entendo serem posturas equivocadas, mas pensar sobre o todo de nossa e de outras universidades brasileiras. Falo da UFRGS por ser a realidade que eu conheço, por considerar essa universidade uma extensão da minha casa e da minha vida, e por isso mesmo quero o melhor para ela..Entre a graduação, mestrado e doutorado, estudo lá a dez anos e tenho afeto pela instituição e por algumas pessoas que nela atuam.
O fato de não haver audiodescrição nas cerimônias públicas e demais eventos culturais da universidade é só um disparador para uma questão maior, que corresponde a construção do que eu e outros tantos ativistas temos chamado de “cultura de acessibilidade”. Isso não é algo fácil de alcançar, mas é preciso começar. Isso se efetivará quando TODAS as atividades forem planejadas desde sua concepção com os recursos de acessibilidade, e não pensar nos mesmos na hora que as demandas aparecem.
Quando chegarmos a esse ponto, não ouviremos mais: “não há recursos” ou “acessibilidade, nunca pensei nisso antes” e por fim, o argumento que mais me tira do sério: “não há público que valha a pena o investimento”. Todas essas justificativas já ouvi em diferentes situações e instancias da universidade. Uma pessoa que seja que se beneficie de audiodescrição nessas ocasiões já vale a pena todo e qualquer investimento, porque sensações não tem preço. Uma cultura acessível não é a que supre necessidades, mas a que apresenta diferentes possibilidades, que não age no atropelo, mas pelo acolhimento.
Não sei se certas incompetências – e prefiro usar esses a outros adjetivos – fazem parte apenas do que diz respeito à acessibilidade, mas às vezes me parece que há o entendimento de que audiodescrição, rampas, pisos táteis e outras coisas são tomadas como secundárias ou até dispensáveis. Ou, tão nocivo quanto isso, a ideia de que por ser um “benefício” eu devo ficar satisfeito com as migalhas de acessibilidade que por ventura me ofereçam.
Perdoem-me discordar, mas acessibilidade não é caridade, não é voluntariado, é sim um DIREITO de todo e qualquer cidadão que sinta necessidade de seu provimento. Sendo assim, devem ser tratados com semelhante comprometimento, profissionalismo e seriedade das ações que tragam convidados famosos ou que deem visibilidade às universidades e outras instituições.
Existem muitas pessoas compromissadas e programas exemplares na UFRGS, como o Programa Incluir, por exemplo, sem o qual eu não teria conseguido chegar até aqui e onde encontro o meu “porto seguro” quando tenho necessidades específicas de acessibilidade em meus estudos. Há problemas, mas todos são ultrapassados com competência, conhecimento e acolhimento, por seus membros. Por isso, o Incluir é o único lugar na UFRGS onde me sinto “em casa”.
Escrevo esse texto – não querido leitor, eu não me perdi no tema – refletindo sobre os questionamentos apontados logo no princípio e me recordando do que aconteceu apenas uma semana depois que cheguei à Barcelona.
Assim que encontrei Pilar Orero, minha orientadora na UAB, disse que dois dias depois haveria uma cerimônia de Aula Magna e concessão de título de Honoris Causa, além de outras homenagens a estudantes. Esse evento teria audiodescrição, como sempre acontece desde 1999. Perguntei a ela se havia público para esse recurso, e prontamente me respondeu que não sabia, mas que como a cerimônia era pública o serviço deveria ser prestado pois poderia aparecer alguém que quisesse usar. Lógico, lá estava eu no dia e hora marcados.
Mais do que isso, a audiodescrição é transmitida pela rádio da universidade, o que possibilita a quem não teve oportunidade de estar presente, também ter acesso ao conteúdo completo da cerimônia. Quando perguntei sobre o custo de tudo aquilo ela me disse: “não é baixo, mas regimento se cumpre”. Como assim regimento?
Dias depois, tive acesso a um documento que tem força de regimento e que trata das questões das minorias sociais. Dentre elas, as pessoas com deficiências e necessidades especiais. Pois bem, dentre tantas disposições, uma chamou-me a atenção, se um docente, diretor de departamento ou os responsáveis pela estrutura e mobilidade da universidade não proverem os recursos de acessibilidade, esses serão responsabilizados e penalizados de acordo com o previsto no regimento.
Primeiro, que acessibilidade fazer parte do regimento acadêmico é algo que nem em meus maiores sonhos pensei ver. E, segundo, que o tema é tratado com a importância devida, e quem não o tratar como tal terá de arcar com as consequências. Uma cultura se cria com consciência e educação, mas se isso não adiantar, as sanções são a solução.
Talvez por isso, tudo aquilo que me diziam ser impossível eu vejo sendo aplicado com naturalidade por aqui. Em 1999, foi publicado o Regramento de igualdades de oportunidades para as pessoas com necessidades especiais.  Não há desorganização, “erros de comunicação”, privilégios ou “pessoalização” das ações de acessibilidade, e sim, o cumprimento do respectivo documento.
Portanto tenho certeza que um dia isso vai mudar. Quiça, na próxima Aula Magna, exposição fotográfica ou qualquer outra programação da difusão cultural da universidade, a acessibilidade – e especificamente, a audiodescrição -  será implementada adequadamente e os agentes que atuam nessas áreas já terão um plano consolidado sobre o tema, e que nunca mais as pessoas com deficiência ficarão à margem das cerimônias e demais eventos, afinal, como diz o cancioneiro:
é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida”.

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