quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Só pra contrariar, obrigado por não enxergar

Há alguns séculos atrás os sujeitos considerados anormais eram tidos como a personificação dos pecados da humanidade, das mazelas individuais de um sujeito ou ainda como uma “oportunidade” de exercer a caridade pra com o próximo, vítimas de um fardo pesado, dignos de pena e de uma inata incompletude que mereceria compadecimento. Assim, durante longo tempo os indivíduos com deficiência foram tratados como uma espécie de moeda de troca para indulgencias aos pecados mundanos. Quando se queria comprar um lugar no céu, logo se ajudava um doentinho e tudo estava resolvido.
Os anos foram passando, as sociedades se transformando e chegando rapidamente a atualidade, a questão da inclusão parece algo que sempre esteve ai, dada a sedução competente de seus discursos. Às vezes chegamos até a pensar que ninguém mais trataria a deficiência como um castigo. Mas talvez isso não esteja tão no passado assim. Sem querer fazer juízos de valor, mas eu diria que tenho pena apenas daqueles que tem pena de si mesmos.
Fico realmente triste quando vejo que sujeitos com deficiência vêem sua condição como um castigo divino. Primeiro porque, me desculpem os religiosos, mas acredito que nenhuma divindade verdadeiramente boa puniria quem quer que fosse. Ainda assim essa percepção de si mesmo é cômoda e limitadora.
Tudo parece mais fácil para as pessoas quando elas estabelecem um discurso de pena e comiseração de si mesmas, afinal, qualquer coisa que elas consigam para além do nada já parece uma vitória epopéica. É simples aceitar ficar posicionado em um lugar onde a sensação interna de inferioridade recebe um afago a cada elogio de “superação” ou a cada desculpa pelo fracasso. Ou seja, sempre há um motivo prévio, para o sucesso ou a falta dele.
Ver a deficiência como um castigo é abdicar da beleza de perceber o mundo de modo diferente da maioria. Somos pessoas que percebemos as nuances da vida não pelo que elas aparentam, mas pelo que elas são, vemos as coisas em cada detalhe no toque e no contato entre nós e o outro. A cegueira não está no fato de não enxergar, mas na tristeza por não querer ver.
Não enxergar é libertador, no sentido de que podemos usar a imaginação, usar outros sentidos fugindo a uma lógica oculocentrica de estar no mundo que não está para além do superficial, diferente de uma ideia que não estabelece a imagem como o fundamental, e sim uma estética da sensibilidade da emoção, perceber o mundo pela arte do sentir. É ter a sabedoria de construir imagens muitas vezes sem referencias sobre as mesmas, e outras tantas construí-las de modo muito mais inventivo do que aqueles que enxergam como de acordo com o que se classifica como normal.
Numa sociedade em que tudo passa muito rápido, em que as imagens são a força motriz da maioria das relações, são também, entendidas como decisivas para o sucesso e o fracasso, nós que somos tidos como privados das imagens, agimos num sentido contrário, remando contra a maré e mostrando que o visual e o visível não são essenciais, não tolem a criatividade, não encerram os sujeitos em mundo das trevas, mas sim, demonstram a riqueza e a superioridade que as sensações tem sobre essas imagens, afinal, um sentimento vale mais do que mil imagens.
De minha parte o mundo parece muito mais atrativo tendo baixa visão do que tendo alta visão, não consigo me imaginar tendo a empáfia de enxergar “perfeitamente” e achar que vejo o mundo com uma perfeição que ele de fato não tem. Enxergo o mundo como ele é, as vezes borrado, as vezes escuro, as vezes sem nitidez, mas sempre é um mundo percebido pela minha sensação e não pela dos outros.
Dias atrás, depois de uma apresentação de minhas pesquisas, a mãe de uma deficiente visual falou comigo e disse: “a partir de hoje quando eu chegar em casa eu vou ver a minha filha não mais com pena, mas com orgulho”. Pois então acho que pensar a deficiência como castigo é um castigo merecido para quem pensa assim.

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