quarta-feira, 25 de junho de 2014

Jantando às cegas – mais do que gastronomia, uma experiência sensorial.



Demorei um tempo até escrever sobre essa experiência que vivi ainda em Barcelona. Gostaria de ter falado sobre isso a mais tempo, mas os acontecimentos foram soterrando as possibilidades de comentar sobre esse momento tão maravilhoso que eu vivi poucos dias antes de voltar ao Brasil. Mas talvez seja verdade que tudo tem sua hora, e agora urge contar sobre o Dans Le noir?, restaurante de Barcelona onde se janta ás cegas.
As associações de cegos na França promoviam, esporadicamente, jantares às escuras para sensibilizar os familiares e amigos dos seus alunos e internos sobre as dificuldades e peculiaridades da vida cotidiana dos cegos. Certamente, tendo também o objetivo de arrecadar fundos para os institutos. Mas, essa iniciativa se tornou contínua e comercial a partir de 1999, e muito rapidamente espalhou-se para outros países como Suíça, Alemanha, Estados Unidos, Argentina, Espanha e outros – no Brasil ainda nada.
Especificamente, a cadeia de restaurantes Dans Le Noir? foi fundado em 2003, tendo uma de suas filiais em Barcelona. Quando soube que havia um restaurante como esse na cidade onde eu morava, tive muita vontade de ir, mas infelizmente muitas coisas ainda me impediam.
Quase no fim de minha estadia em Barcelona, as amigas e professoras da UFRGS Adriana Thoma e Liliane Giordani foram até a capital catalã para realizar visitas técnicas e reuniões, objetivando estabelecer parcerias com a UAB nas áreas de inclusão e acessibilidade. Quando lhes comentei sobre o “restaurante às cegas” elas logo toparam a ideia, e assim, devo agradecer pelo convite e a oportunidade de estarmos juntos naquele lugar tão instigante.
O ambiente na entrada é agradável e os recepcionistas são muito simpáticos e atenciosos ao explicar os procedimentos necessários para iniciar o “evento”. A sala de espera tem decoração simples, com alguns quadros e velas, formando um ambiente muito acolhedor.
São três sessões de jantar por noite em diferentes horários, pois a capacidade da sala escura se limita em no máximo 24 pessoas. Os recepcionistas do restaurante reúnem as pessoas que participarão de uma determinada sessão, e dão as orientações básicas, perguntando a ordem em que queremos nos sentar. A partir disso, organizam uma fila de tal modo que vá uma pessoa atrás da outra e no momento em que forem conduzidas até a sala escura, estejam em posições condizentes com aquelas que apontamos.
Toda a organização e orientação é impecável, feita com muita clareza e descontração, o que ajuda a quebrar um pouco o clima de tensão que toma conta dos videntes que tem medo de não ver nada. Depois é ir para dentro da câmara escura em fila indiana, ultrapassar as grossas cortinas negras e mergulhar na escuridão completa, como quem entra em um outro mundo, para mim, até melhor que o do lado de fora.
Antes de dar mais detalhes, é preciso dizer que a cegueira NÃO é uma escuridão completa. Muitas vezes as pessoas acham que os cegos vivem presos no eterno breu, mas não é verdade, muitos percebem a luz, muitos tem um pouquinho de noção de brilho e outros enxergam cores como marrom, amarelo escuro e a mistura de todas, como é omeu caso, que vejo infinitas formas geométricas de cores brilhantes, minha cegueira é como um caleidoscópio com fundo marrom. Assim, as pessoas não vivenciam a experiência de ser cego, mas sim a de não enxergar, o que é diferente.
Uma questão interessante é que todos os garçons que atendem no restaurante são cegos. Após serem selecionados, eles recebem treinamentos específicos para conhecer o espaço em que irão servir os pratos, bem como para atender os clientes em suas necessidades como servir as comidas e bebidas ou guiar os clientes até os sanitários, por exemplo. Ou seja, por lá, os cegos é que guiam os videntes, e isso por si só é algo muito importante de ser mencionado.
No momento em que se inverte a lógica de que um cego deve ser sempre assistido, e quando um vidente se sente perdido em meio a um mundo que ele não conhece, percebe que o problema não está na deficiência, mas no conceito que temos de limitação que não ter um sentido pode nos causar. O problema não é a falta da visão, mas o fato de ficar preso a ela.
Mais do que isso, nesse momento em que as pessoas videntes se veem sem enxergar começam a se colocar no lugar do outro no sentido de tentar se acostumar, de encontrar alternativas nos demais sentidos, de sentir o mundo sem a visão, e não pelo lado do compadecimento. Ao menos na maioria das vezes, o que se nota é a percepção de que a visão é importante, mas sem ela é possível fazer quase tudo com qualidade, desenvoltura e alegria.
Conforme a Patrícia, Adriana e Liliane me comentaram, a sensação do vidente quando entra naquele ambiente escuro é inicialmente de angústia e apreensão por perderem as noções de localização e de espaço que a visão proporciona. O fato de não ter o que e para onde olhar é também uma das coisas que deixa certo incomodo no começo, da mesma forma que a dificuldade em saber como perceber os objetos que estão próximos, como os talheres, pratos e copos. Depois de algum tempo, elas me contaram terem se acostumado em estar naquele lugar e usando os outros quatro sentidos com mais intensidade e sentindo-se a vontade  no ambiente escuro, mudando a relação  que tinham com as noções de espaço, com a percepção de seus movimentos corporais e outras coisas bem interessantes. Essa nova e diferente forma de pensar a si mesmo é algo muito legal e repleto de surpresas que encontramos dentro de nós mesmos quando estamos abertos a novas e diferentes formas de ver o mundo.
Enquanto todos buscavam se acostumar ao ambiente em que não podiam enxergar, eu me sentia tão a vontade quanto na sala da minha casa. Não conhecia bem o lugar, mas em menos de 30 segundos comecei a perceber de onde vinham os sons e a descobrir mais ou menos onde estavam as paredes. Fui tocando a mesa e as cadeiras, sentindo os aromas e outras formas de me localizar, e por ter meu senso de espacialidade bem treinado, rapidamente me senti confortável.
Além disso, foi muito divertido ver as pessoas passando pelas mesmas dificuldades que eu passo cotidianamente, como saber o que está comendo, encontrar um guardanapo sem enxergar e algumas outras coisas menores. Não tive nenhum problema para comer com a mão, pois era mais fácil de pegar o alimento, muito menos para me concentrar no sabor de cada um daqueles pratos deliciosos e com variados sabores e texturas.
Foram quatro pequenos pratos servidos, sendo o primeiro a entrada, outros dois principais – um quente e outro frio – e a sobremesa. Isso tudo, regado a duas taças de vinho e uma de cava, sobre as quais muita gente se engana sobre os sabores e tipos das bebidas, confundindo seco, tinto, suave, branco e outros sabores.
Todos os garçons são cegos e a que nos atendeu se chamava Pilar, muito simpática e bem humorada, com quem logo me identifiquei. Muitas vezes as pessoas não entendem porque nós com deficiência visual nos identificamos uns com os outros e já nos sentimos quase como amigos com pessoas como nós, mas partilhamos de diversas coisas em comum, a começar por ver a vida sem o sentido da visão. Estar junto com alguém que é quase “como nós” é sempre uma sensação de “estar em casa” e é isso mesmo que senti o tempo inteiro.
Por fim, foi uma experiência sensorial como nunca tinha vivido antes, uma noite que ficará para sempre marcada na minha memória tanto pelo sabor da comida, pela simpatia do pessoal do restaurante e pelas milhões de sensações que cear às cegas me proporcionou.
Todas as pessoas deveriam participar dessa experiência ao menos uma vez, pois aprender a se colocar no lugar do outro é fundamental para viver em um mundo onde as diferenças devem ser respeitadas e saudadas como a mais bela forma de nos tornarmos pessoas melhores e mais ricas. E ainda que a cegueira não seja uma escuridão completa, às vezes é do breu que se faz a luz.

No interior do restaurante e sentados em frente a uma das mesas, no centro e da esquerda para a direita, estão Liliane, Felipe, Patrícia e Adriana. 
Ao fundo, uma parede branca com um quadro preto acima de nossas cabeças. Nele, em letras brancas e no código braile está escrita a palavra "Noir".
















Um comentário:

  1. belíssima postagem! com a riqueza de detalhes de tua descrição me senti mergulhada na experiência...agora quero ter a oportunidade de vivenciar na pele...

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