domingo, 26 de janeiro de 2014

O mais triste de todos os domingos

Na noite do dia 26 de janeiro do ano passado eu e a Patrícia saímos para jantar com amigos. Nos divertimos muito, tomamos umas cervejas, em ótima companhia e ouvindo boa música. Um pouco antes de um novo dia começar chegamos em casa, e para variar, eu tive insônia. Mas, naquela noite foi diferente, eu estava com uma angústia sem explicação. Não dormi naquela noite.
Fiquei ouvindo rádio para ver se o sono chegava, até que a programação foi interrompida para falar de um incêndio em Santa Maria que teria matado uma pessoa. Meia hora depois, outro corte, dessa vez em definitivo, para falar diretamente do local. E a partir dai, começou o domingo mais triste do Rio Grande do Sul.
Quanto mais o tempo e as notícias se seguiam o quadro ia ficando mais aterrorizante. Uma boate superlotada pegara fogo e o cenário era o pior possível. A cada minuto aumentava o número de mortos e feridos. Sabendo que a Patrícia tem familiares na cidade, fiquei ainda mais apreensivo.
A boate Kiss, pela ganância e mau caráter de seus donos estava superlotada e recheada de irregularidades como sempre, e o que deveria ser uma noite de festa, virou um pesadelo real. Como pode isso, jovens até mais novos do que eu, com uma larga trajetória de vida pela frente morrerem desse modo tão abrupto?.
Aquele início de manhã do dia 27 de janeiro mudou a minha vida. Enquanto a Patrícia dormia e eu ouvia a cobertura pelo rádio, o sol nascia e me pegava pensando em meio ao silencio triste. O primeiro pensamento que me veio foram as noites em que eu também participava de festas em locais com lotação absurdamente ultrapassada.
Achava até legal aquela multidão se divertindo, a energia sempre foi boa, mas a gente ignorava o perigo. Nunca entendi o motivo de meus pais me esperarem acordados em cada uma dessas noites. Achava que eles deveriam descansar e que aquilo era uma bobagem. Que tolo eu fui, aquilo era uma das maiores demonstrações de amor que eles poderiam me dar, mas só então eu vi as coisas por esse ângulo.
Consegui entender o que eles pensavam e o que sentiam toda vez que me viam entrar em casa inteiro e pronto para outra. Muitas vezes a gente desconsidera alguns gestos de amor, e demora muito para ter ideia do que eles representam. Pelo menos eu tive tempo para descobrir isso, algo que provavelmente muitos dos meus semelhantes que feneceram naquela noite não tiveram.
Outro fato que me fez refletir, foi ao ouvir os relatos de que muitos daqueles que morreram conseguiram sair daquele inferno, mas retornaram para tentar salvar pessoas que nunca tinham conhecido. Muitos pereceram assim, salvando muitas vidas em detrimento das suas, e isso é que ainda me faz acreditar na humanidade.
O dia foi passando e Porto Alegre estava em um silêncio incomum, e assim ficou durante todo o dia. Vi e ouvi as imagens do ginásio onde estavam os corpos e centenas de celulares tocavam ao mesmo tempo, provavelmente as famílias ligando para os jovens que já haviam nos deixado. Nem em meu último dia de vida esquecerei dessa imagem de tamanho sofrimento.Do jeito mais desagradável possível, e pela primeira vez, eu entendi exatamente o que é e o tamanho do amor de pais por seus filhos. Tudo aquilo me causou medo e admiração.
Foram 242 pessoas mortas, mais de uma centena de feridos e milhares de pessoas atingidas diretamente, que perderam filhos, irmãos, pais, amigos ou alunos. Mas, o estado inteiro sofreu um golpe muito duro. A cidade ficou calada, não fossem os helicópteros que subiam e desciam com no parque da Redenção, com os feridos transferidos de Santa Maria.
Eu não conheci diretamente ninguém que foi atingido pela tragédia, mas isso não é preciso para sentir uma dor sem tamanho, basta se colocar no lugar daquelas pessoas. A sociedade gaúcha tão conhecida pelo binarismo, nesse caso se uniu em um luto doido.
É inaceitável que tantas vidas promissoras tenham sido ceifadas, foram tantos os sonhos destruídos naquela noite que fica impossível dimensionar o que isso representa. Quando a imprensa divulga todos os números e nomes daqueles que morreram, parece algo trágico, ainda mais se lembrarmos que cada pessoa é um universo. Cada um dos mortos e feridos tem uma família, tem amigos, tem uma história de vida que foi solapada. Não é possível sequer imaginar quanta falta faz uma dessas pessoas para seus entes, imaginem se falarmos de todas.
Infelizmente, os proprietários do local nunca pensaram na segurança de seus clientes. Mais do que colocar a vida de seus clientes em constante risco, no dia do ocorrido, muita gente morreu porque os seguranças ao invés de abrir, fecharam as portas do local. Os políticos lavaram as mãos e não fiscalizaram como deveriam. Descumpriram leis, fiscalizaram mal, foram responsáveis pela morte de centenas de pessoas, e continuam soltos.
Se fossem seres humanos que merecessem alguma consideração, teriam reconhecido o que fizeram e assumido sua culpa. Mas preferiram contratar advogados com caráter parecido com os seus, e que fazem sempre questão de culpar as próprias vítimas. O prefeito e seus amigos foram coniventes, e portanto, tão responsáveis quanto os donos, mas a in-justiça os livrou, ainda.
Um ano depois, percebo que os legisladores tomaram atitudes muito mais para aparecer na mídia do que por convicção. Nada foi feito de concreto que não fosse para parecer que fizeram alguma coisa depois do que aconteceu. Foi preciso morrer tanta gente para que os legisladores e a inerte sociedade brasileira fizesse alguma coisa. Coisas que, infelizmente, estão se dissipando com o tempo. Boates seguem irregulares, órgãos de fiscalização continuam burocráticos e sem pessoal suficiente, e a população continua em risco.
Acho que todos nós aprendemos com tudo que aconteceu, mas cada dia que passa  tudo volta a ser como era antes. Depois da forte comoção popular o que ficou foi a lembrança, mas sem que isso resultasse em benefícios duradouros e práticos.
A vida é tão valiosa e linda que as vezes eu acho que deveria ser deveria ser eterna. Mas como não é, é preciso ter cuidado sempre, já que há muita gente que amamos e que nos amam, para quem nossa ausência seria uma catástrofe.
Nesse mundo acelerado em que a gente vive algumas coisas se perderam, como as demonstrações de afeto e as declarações de amor pelo outro, algo tão importante de ouvir, e principalmente, de dizer. Fatos como esse nos provam que esses gestos são fundamentais, já que se demorarmos muito para fazer isso, pode não haver tempo.
Dizer tudo que eu sinto sobre esse assunto seria impossível, mas gostaria muito que as pessoas refletissem sobre as circunstâncias de tudo que aconteceu para que não se repita. Acho que é um bom momento para nos darmos conta que cada instante de vida é importante, que é preciso ter zelo e cuidado consigo mesmo pelo amor que sentimos pelo outro. Amar com intensidade é entender o amor daqueles que te querem bem.
Fica minha singela e sincera homenagem a todos aqueles que se foram, aos feridos e demais atingidos por esse fato tão lamentável. Desejo que tenham muita força e serenidade. Embora nada traga todas as radiantes vidas de volta, espero que a justiça seja feita e que cada um de nós aprenda com tudo que aconteceu. Façamos com que a morte de tantos jovens não tenham sido em vão. Parecem clichês, mas é o que eu sinto.
Enfim, nossas vidas ficarão marcadas para sempre por aquele domingo tão triste e que nunca deveria ter existido. Desejo que nunca mais se repita a  estupidez que fez com que isso ocorresse, que a voracidade empresarial pelo lucro dê lugar ao zelo e preocupação com o outro. Espero que fique o sentimento de solidariedade, empatia e amor pelo próximo, a única coisa boa que restou disso tudo.

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