sábado, 30 de março de 2013

Os sonhos nunca fenecem

Confesso que durante algum tempo achei que estava sendo em vão todo o trabalho que eu desenvolvia como acadêmico e como ativista na luta pela acessibilidade e dos direitos das pessoas com deficiência visual. Como o meio acadêmico é um tanto restrito e os estudos sobre as temáticas que investigo mais ainda, me sentia como se tudo que eu fizesse não chegasse e nem tocasse aqueles que eu gostaria que fossem contemplados pela minha luta.
Lembro que não foi uma ou duas vezes em que pensei em desistir desses estudos e seguir outros caminhos. Mas como cabeça dura que eu sou, persisti. Depois que conheci a audiodescrição em 2010, descobri que talvez estivesse ali uma chance de me aproximar do público com deficiência visual e tentar fazer a vide de muita gente um pouquinho melhor.
As coisas foram acontecendo, acabei me tornando audiodescritor além de pesquisador. Passei a ver que a audiodescrição poderia ser esse elo que eu tanto procurava e passei a realizar projetos que dessem voz às pessoas cegas e com baixa visão.
Eu e minha amiga, Mariana Baierle além dos projetos em AD, fizemos o documentário Olhares em 2012, retratando o acesso – ou a falta dele - a cultura por pessoas com deficiência visual..
O Olhares foi uma das coisas mais importantes que eu já fiz na vida. Por mais que as condições do filme não sejam as melhores, nós conseguimos tocar o coração de muita gente, pais de crianças com deficiência que nos procuram e dizem que não mais irão ver seus filhos com as lentes da comiseração e da culpa, por exemplo. Nos fez conhecer gente bacana de Salvador a Porto Alegre.
Por conta do nosso trabalho no Olhares e na Tagarellas Audiodescrição fomos chamados a participar de alguns eventos no Rio Grande do Sul. Um deles, em um município da região metropolitana de Porto Alegre, em que debatemos sobre AD em um seminário de acessibilidade.
Eu sempre gosto desses eventos por conhecer gente legal e interessada no tema, além de fazer amigos cegos e com baixa visão. Por isso mesmo, nós sempre procuramos conversar o máximo que podemos com os colegas de evento, passar um pouco da nossa vida, dividir experiências e levar uma mensagem de otimismo para todos.
Poucas semanas depois, fomos convidados desse mesmo município para apresentar o Olhares num evento literário na cidade. Muitos amigos que estiveram no seminário dias antes, também estavam presentes, e fizemos questão de chegar bem antes da exibição do filme para compartilhar ideias, conversar e conviver um pouco com nossos novos amigos.
O que sempre procuramos levar de bom é a experiência de fazer da acessibilidade uma possibilidade de acolher e aproximar pessoas. Mais que construir rampas e pisos táteis, nosso objetivo sempre é fazer as pessoas serem tocadas, e fazer com que esses encontros sejam momentos felizes e de congraçamento. Afinal, não há inclusão sem acolhimento! E isso eu direi sempre.
Essa semana soube de uma história que fez valer a pena toda minha persistência, todas as vezes em que fui adiante mesmo sofrendo com aquela sensação de desalento que contei no inicio. Conhecemos um jovem nesses dois eventos na cidade referida antes, muito simpático e interessado pelo nosso trabalho.
Também pelo fato de ser cego teve dificuldades no acesso à cultura – exatamente como nós – e ficou encantado com a AD e suas possibilidades, além de ficar muito entusiasmado em conhecer eu e Mariana que - às vezes contra nossa vontade – somos tidos como exemplos de conduta diante da deficiência, por termos mestrado, profissões consolidadas e levarmos adiante muitos projetos, e não tratarmos a baixa visão como um impeditivo, mas como mais uma característica que nos constitui.
Por mais que não desejemos ser exemplos, muitas vezes, as pessoas se dão conta de que se a gente conseguiu elas também podem tentar. 
Conheci os detalhes que relato a seguir através de uma amiga que temos em comum e que me contou essa história, que confesso ter dificuldade em escrever de tanto que me tocou.
Seja como for, uma chama se acendeu no coração desse nosso amigo, e durante alguns meses ele pode desfrutar de uma alegria ainda maior, se interessou por muito mais coisas, viu a vida com muito mais beleza e felicidade. Passou a buscar novas possibilidades de conhecimento e de entretenimento. Saiu mais de casa, conheceu outras pessoas. Enfim, se tornou um cara ainda mais feliz.
Ele se interessou por audiodescrição e começou a assistir a filmes, ir a eventos e a ter vontade de trabalhar com esse recurso também. Mas o que importa aqui é que esse amigo mudou sua vida, ampliou seus horizontes e isso lhe fez muito bem. Sempre falou em mim e na Mariana com afeto, o que sempre é uma alegria para nós dois quando as pessoas se sentem bem com o que a gente tenta transmitir.
A parte mais chata da história foi quando a minha amiga que relatou esses fatos, disse que o rapaz em questão teve um problema sério de saúde e estava no hospital em condições bem complicadas e em quadro considerado irreversível. Enquanto escrevia a primeira versão desse texto, soube que ele nos deixou sem que tivesse a chance de pelo menos ouvir o que eu escrevi. Coisas da vida... 
Confesso que no dia em que tomei conhecimento da história, tive dificuldade em continuar a aula que estava ministrando naquele dia, pois aquilo me tocou muito, muito fundo mesmo.
Pelo que a minha amiga continuou contando, ele estava vivendo os melhores dias de sua vida, os mais alegres pelo menos, depois que teve contato com a audiodescrição, com nosso trabalho e com nossa amizade. Por isso, digo a ele, amigos e familiares que esse caso representou muito na minha vida, pois foi a sensação de recompensa por todo o esforço e dificuldades que eu tive. Eu sempre disse que se eu conseguisse ajudar uma pessoa que fosse tudo já teria valido a pena. E valeu! O que vier daqui em diante é lucro.
Claro que eu sou profissional e gostaria que a acessibilidade me desse mais do que satisfação pessoal. Mas, nenhum cachê que eu receba será maior do que saber que alguém ficou um pouco mais feliz e que de alguma forma refez uma parte de sua vida por nossa causa. Foi pensando nisso que entrei no mundo da acessibilidade, tentar melhorar a vida das pessoas com deficiência. Ao descobrir que consegui um pouco disso, me sinto com a missão cumprida, e com desejo e força para seguir adiante e lutar para que mais e mais pessoas se sintam como eu.
Muitos poderão achar que seis meses de vida alegre é muito pouco, mas tem gente que vive mais de cem e nunca esteve frente a frente com a felicidade. Mesmo um segundo vivido com sorriso é melhor que uma existência fria. Não me sinto herói por ter ajudado esse amigo e de alguma forma contribuir para que ele tenha partido em paz, mas sei que fiz a minha parte colocando um tijolinho na ponte da felicidade.
Não quero terminar esse texto com tristeza, embora seja assim que eu me sinta ao escreve-lo. Gostaria de propor a troca da tristeza pela esperança, de que a acessibilidade possa chegar a muito mais gente, que ela possa fazer a vida de outras tantas pessoas um pouquinho melhor. Tenho esperanças que ao invés de muros, construiremos pontes, ao invés de olhares enviesados e de preconceito, trocaremos olhares fraternos e abraços acolhedores.
Tenho a plena certeza de que com muita luta e alegria em fazer as coisas a gente atinge esse objetivo. Até porque, quando um dia eu reencontrar esse meu amigo, eu possa abraçá-lo e dizer: cara nossa luta não foi em vão, ela valeu muito a pena!

2 comentários:

  1. Às vezes a gente pensa que está preparado para o que sabemos que vai acontecer. Descobri que a gente nunca está. É como a descida da montanha russa. Sabemos que, se estamos subindo lentamente, logo, iremos descer, numa velocidade inversamente proporcional a que subimos.

    Mas nunca estamos preparados.

    Porém estamos seguros. No meu caso, minhas lágrimas enquanto eu lia o texto podem ser creditadas à barreira imposta por quem pode nos ajudar a construir um mundo todo para todo mundo e não fazem porque simplesmente não acreditam em um retorno rápido, seja financeiro ou eleitoral. Quem ousa trabalhar com e pela acessibilidade mata vários leões por dia, principalmente na etapa que já deveria ter sido vencida que é a de justificar por que recursos de acessibilidade - não apenas rampa - são tão importantes.

    E hoje, mais do que nunca, reafirmo meu compromisso com a acessibilidade. Não sei quanto tempo de vida eu tenho mas quero, independente das minhas infelicidades pessoais, estudar muito, me aprimorar, fazer com que a vida das pessoas que necessitam de um recurso diferenciado para ter a mesma felicidade dos demais, seja muito mais do que determinam suas limitações.

    Belo texto. Muito obrigada por tudo.

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  2. texto lindo. me emocionei. Tudo vale a pena quando a alma não é pequena ♥

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