segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Deficiência plural e singular



Normalmente, o pensamento mais corrente nas sociedades é de que todas as pessoas com deficiência são iguais, que tem as mesmas necessidades, que tem personalidades, gostos e desejos semelhantes. Muitos acham que se conhecem um cego, sabem do que todos os cegos precisam, e isso está muito longe de ser verdade. Felizmente para a humanidade, as pessoas são plurais e cada um de nós é um pequeno universo, somos diversos e até ao inverso.   
Sempre refleti sobre isso, mas dois fatos me chamaram a atenção ainda mais para a pluralidade dos sujeitos. Recentemente, assisti a uma palestra sobre as questões da homossexualidade e do corpo como forma de identidade. Também pude finalmente assistir ao filme “Eu quero voltar sozinho”, onde um adolescente descobre sua sexualidade e percebe estar apaixonado por outro rapaz, e o mais interessante foi a forma digna, afetuosa e emocionante como o tema foi tratado na obra. O detalhe é que o personagem é cego, e foi um dos melhores filmes sobre deficiência que eu já vi.
Recordo-me de uma situação ocorrida há seis anos, quando uma colega de mestrado estudava sobre “surdos com síndrome de down”. Em uma das aulas debatendo sobre seu projeto, a questionei da seguinte maneira: “por qual motivo tu usas surdos com down? Por que não usar dows surdos?”. Ainda que muitos acreditem que temos uma identidade que nos caracterize mais do que as outras, é preciso pensar diferente do usual, que somos muito mais do que “apenas” cegos, surdos, com down, negros, homossexuais ou outros.
Já faz algum tempo que como acadêmico e como sujeito com deficiência venho desejando estudar ou refletir mais sobre aquelas pessoas que vivem à margem, ou se preferirem, nas zonas de fronteiras entre algumas diferenças das chamadas minorias. E as mulheres, os negros, os pobres ou imigrantes com deficiência? E /se forem tudo isso ao mesmo tempo? E se forem tudo isso e mais algo que sequer eu citei aqui?
Tenho pesquisado bastante sobre as marcas culturais com as quais pessoas cegas e com baixa visão se identificam e que possibilitam a construção de certas identidades que nos acolhem. Mas, fico sempre desconfiado e atento para que essas identidades não formem um ideal de pessoa com deficiência visual, um modelo a ser seguido como uma identidade única.
Talvez, muitos podem dizer apressadamente que isso pareça quase que eu mesmo destruir os castelos de areia que “criei”, mas acredito que o que temos são possibilidades de identificação, e não modelos indenitários a serem seguidos como dogmas. Mesmo porque, se descartarmos aqueles diferentes dos modelos que se imaginam dos “cegos de verdade”, agiremos exatamente igual aos que condenamos por nos excluírem.
Quando fiz meu doutorado sanduíche em Barcelona, conheci um rapaz com baixa visão militante no movimento das pessoas com deficiência da Catalunha. Contou-me dentre tantas coisas interessantes, que fazia parte de uma comissão específica para tratar sobre os homossexuais cegos e com baixa visão. Foi a primeira pessoa com deficiência visual gay – ou vice versa, como preferirem – que eu conheci, não por vontade, mas por falta de oportunidade.
Além disso, ele relatou as dificuldades enfrentadas por estar em uma zona de fronteira, pois se tem a ideia de que sujeitos com deficiência são assexuados – e isso está bem longe da verdade -, e como um gay que tem uma diferença corporal, se via pouco aceito na “comunidade”. Assim, ele via-se excluído por ser cego, por ser gay, por ser um cego gay, por ser um gay cego, quando deveria era ser respeitado por ser ele mesmo.
Ultimamente, tenho ampliado minha rede de contatos com sujeitos cegos e baixa visão, e entre eles, conheci direta e indiretamente pessoas com deficiência visual com orientação homossexual. Tenho interesse em entender como e a vida dessas pessoas que muitas vezes são multiplamente mais excluídas do que normalmente já somos. Que estratégias utilizam para lidar com os desafios que essas situações lhes impõem?
Um exemplo, é que alguns homossexuais contam que “conhecem pelo olhar” quem é ou não “como eles”, mas e uma pessoa cega como faz? Uma alternativa muito usada tem sido os aplicativos de “paquera” para celular, sendo a visualidade o principal fator de contato entre os usuários, mas, como faz alguém que não enxerga?
Acredito que assim como mostrado em “eu quero voltar sozinho” as questões sentimentais sejam semelhantes para os homossexuais que enxergam ou não. O que pretendo trazer para o debate é que muitas vezes essas pessoas ficam um tanto de fora das discussões sobre os seus direitos, sobre as possibilidades de aceitação e respeito às suas singularidades. Como os movimentos de homossexuais e de pessoas com deficiência lidam com essas questões que estão cada dia mais latentes?
Utilizei esses exemplos para propor o debate sobre as diferentes características que pode ter uma pessoa cega ou com baixa visão, não sendo possível falarmos em um “cego modelo”. Também me interessa tratar sobre aqueles sujeitos que são excluídos por mais de uma característica, como no caso das pessoas com deficiência visual homossexuais, excluídas por terem deficiência e por serem gays ou lésbicas. Mais do que isso, excluídas também, por não se encaixarem em modelos estabelecidos pelas minorias a que pertencem.
Portanto, é necessário que exercitemos a hipercrítica e percebamos que pessoas com deficiência excluindo outras por serem “diferentes” é seguir a lógica da exclusão que tanto lutamos para que acabe. Devemos agir com o mesmo desprendimento do preconceito que pretendemos que façam conosco.
Assim, tenho certeza de que esses temas são muito mais profundos do que as discussões que trago nesse texto. Da mesma maneira, não tenho respostas para a maioria das perguntas que trouxe aqui. Convido o leitor para também seguir refletindo sobre essas questões, pois é subvertendo e dissolvendo a lógica excludente que faremos uma sociedade de fato inclusiva.

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