quarta-feira, 12 de junho de 2013

A primeira bengala a gente nunca esquece

Uma das primeiras perguntas que as pessoas me faziam quando sabiam que eu tinha deficiência visual era sobre o fato de eu não usar bengala branca . Na época não dei muita importância ao fato. Lembro que achava até a questão um tanto irrelevante, dado que eu vivia uma fase de indiferença com minha deficiência, e que quanto mais "normal" eu fosse tudo seria melhor. Porém, eu nunca tive medo, desprezo ou rejeição ao uso da bengala - como alguns casos que eu conheço -, apenas não acreditava necessitar dela.
Pouco tempo depois, a vida me mostrou que a aceitação e o ativismo em torno das causas da deficiência era o caminho certo a seguir. Ao começar a conviver e a estudar sobre a deficiência visual, passeia a observar como essas pessoas usavam suas bengalas, notando claramente as dificuldades que tinham, mas também a desenvoltura com que a usavam na maior parte do tempo. 
Por conta de meus trabalhos de mestrado e depois de doutorado, conheci um pouco da parte teórica sobre orientação e mobilidade para cegos, e acabei descobrindo que era muito usada por pessoas com baixa visão, como eu por exemplo. Soube até que existem diferentes tipos de bengalas e que há algumas para serem usadas em festas, vejam só! Sim, ao contrário do que muita gente pensa, a galera cega e com baixa visão adora uma festinha ou eventos sociais.
Com a continuidade das minhas pesquisas e de minha inserção no trabalho de audiodescritor, fez com que meu contato com bengalantes ficasse cada vez mais constante - felizmente. Tanto que, até escrevi um texto chamado "O badalar das bengalas" em que relatei a alegria que sentia toda vez que ouvia seu "badalo" bem característico. A sensação que me arrebata é a de não me sentir sozinho, como se eu me sentisse "em casa" por estar perto de alguém como eu.
A bengala branca é uma das marcas que mais caracterizam as pessoas com deficiência visual, é como um símbolo, um ícone, diria até que um estandarte. No entanto, durante algum tempo não desejava ter uma para mim, ainda que me identificasse com o que ela representa e com os seus usuários.
Só em 2012 comecei a achar interessante a ideia de comprar a minha própria bengala, para a realização de meus estudos ou para usar em viagens em que estivesse sozinho ou na necessidade de me livrar de algum embaraço. Percebi que a bengala ajudaria as outras pessoas a me identificarem como alguém com deficiência, o que muitas vezes é mais seguro e confortável.
Depois de um ano pensando, resolvi ter minha própria bengala. Minha amiga Mariana Baierle me ajudou nessa tarefa, já que ela usa bengala e durante bastante tempo me incentivou a fazer o mesmo. Além é claro, da questão simbólica de ir adquirir o produto com a minha "irmã mais nova" e companheira de baixa visão.
Poucas horas depois eu sai na rua pela primeira vez ostentando minha bengala. Eu precisava viver aquele momento sozinho e isolado com meus pensamentos, e foi emocionante! Andar com a bengala foi para mim como reaprender a caminhar. Talvez por isso, me senti como um bebê que dá seus primeiros passos. Senti como se tivesse me libertado de muitas amarras que teimavam em me prender. 
Me sinto feliz por ser um novo aprendizado a cada instante, e o que antes eu queria esconder, agora faço questão de mostrar. Essa nova criança que pulsa em mim não tem medo do fracasso ou da troça alheia, afinal, aconteça o que acontecer minha bengala sempre mostra que o importante é seguir em frente, pois ela nunca me guiará para trás.
Uma das coisas que me deixou impressionado foi o comportamento das pessoas comigo. Quando passei em uma avenida repleta de pedestres as pessoas abriram alas para mim como se eu fosse um "pop star", mas se eu estivesse sem a bengala eu seria ignorado, ou pior, muitos me atropelariam sem dó.  Muitas pessoas ficavam me olhando como se eu tivesse algum problema grave, mas eu prefiro pensar que me olhavam assim por inveja da minha bengala.
O certo é que me livrei de situações que antes me deixavam bastante tenso, como atravessar uma avenida movimentada sem ajuda (quando se pede ajuda sem bengala as pessoas simplesmente te ignoram). Quando sabia que era perigoso, eu ficava com receio e tomava um milhão de cuidados. Agora, basta eu parar com minha bengala no meio-fio da calçada que logo aparece alguém para me auxiliar.
É verdade que eu perco um pouco da minha liberdade e sossego, na medida em que eu sou abordado inclusive em ocasiões em que eu não gostaria de ser incomodado. Como estou aprendendo a andar com a bengala, caminho mais devagar, o que para um sujeito ansioso como eu é um pouco complicado.Sei que esse é um processo transitório e que rapidamente irei me adaptar, e por isso não acho que seja uma dificuldade significativa.
Por outro lado, fico feliz ao perceber que há bastante gente disposta a ajudar e a ter solidariedade com quem sequer conhece. A maioria das pessoas que encontrei sabiam como deveriam me guiar. Isso é uma amostra de que muitas pessoas já estão minimamente preparadas para lidar com pessoas cegas e com baixa visão, algo que uma atrás seria bem mais difícil. Logo, os esforços que temos feito no sentido de disseminar as ideias sobre acessibilidade começam a dar frutos.
Enfim, não me refiro à bengala como um mero objeto, pois ela não é só um mero instrumento de mobilidade. Algumas pessoas ainda a chamam de "varinha", o que parece tosco em um primeiro momento. Mas, se pensarmos bem, não é tão errado assim, já que a bengala branca é como uma "varinha mágica", que abre muitos caminhos e fazer coisas fantásticas por todos nós. Mais do que mobilidade e segurança, ela produziu em mim a "mágica do acolhimento". Para muitos a bengala branca é o ícone da limitação, para mim é o ícone da libertação.




Descrição da foto.
No centro da foto, da direita para a esquerda, Felipe Patrícia e Mariana posam lado a lado e sorridentes. Felipe e Mariana estão com bengalas brancas à sua frente. Ao fundo, uma sala de aula com cerca de vinte cadeiras vazias.
Fim da descrição

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