Uma das coisas que a deficiência visual me trouxe de bom é
ter aprendido muito com minha bengala branca. Descobri que ela só me leva para
frente e não importa quantos obstáculos existam, segue adiante. Não nego que
são muitas as ocasiões em que mesmo minhas pernas indo para o futuro, viro a
cabeça e olho por trás de meu ombro para ver se encontro nem que seja um
borrado de meu passado.
Essa história da bengala branca me guiar para meu norte se
aplica aos objetivos pessoas e profissionais, ao fato de não guardar rancores por
muito tempo ou algo do tipo. Porém, isso não quer dizer que eu não relembre o
passado ou que não o valorize, muito pelo contrário, eu sinto saudades de tantas
coisas. Muitas que não há como retomar – ao menos nessa vida – doerão para
sempre, outras ficam na caixinha das boas lembranças e da saudade que me faz
sorrir.
Despedidas sempre me deixaram triste, por mais que a decisão
tivesse sido minha e que assim eu siga convicto. E, quando é algo que não depende
de mim, fico ainda mais sensível e com o peito queimando. Sei que isso acontecerá
em muitos momentos, já que a vida é feita de encontros e despedidas, como diria
o cancioneiro. Isso não impede que eu sinta o mesmo gosto amargo todas as
vezes.
Estou na UFRGS desde 2005, quando ingressei na graduação em
Pedagogia. Então, era um rapaz de 22 anos que tinha uma visão limitada sobre a
vida e sobre si mesmo, achando que as parcas migalhas possíveis seriam o
suficiente para uma trajetória feliz. Tinha sonhos que hoje considero rasos, e
que na época entendia como quase inatingíveis.
Durante esse tempo eu me aceitei de coração como alguém com
deficiência, e hoje sinto como se eu jamais tivesse negado a mim mesmo. Aprendi
que é preciso lutar pelo outro, por mais que ele não me seja recíproco, que
tenho direitos pelos quais lutar. Aos poucos, fui me dando conta daquilo que me
fez feliz como nunca, lutar com as armas que tenho para um mundo que respeite
mais as pessoas com deficiência.
As armas que eu tenho são as minhas palavras e as minhas
ações. A minha maneira de agir para um mundo melhor é sendo docente e
pesquisador/ativista, fazendo de minha existência a tentativa de mostrar que
podemos ir muito mais longe do que se pensa. Muitos dizem que as palavras que
escrevo e falo as tocam, e quiçá seja esse meu rumo, tentar mudar as coisas
através de meus trabalhos. Fiz e farei a minha parte para continuar vendo o
sorriso das pessoas que se identificam com o que digo e que se sentem
confortadas em ver que há pessoas como elas e lutando por elas.
Em minha trajetória entre graduação e doutorado percebi que
é esse pulsar das pesquisas, o movimento da docência e as batalhas diárias em
favor do direito a ser diferente que me fazem sentir pleno. Em inúmeras
oportunidades pensei em desistir, já que as coisas pareciam não mudar, e mesmo
assim segui, vendo ali adiante e em gestos tão simples que os resultados das
coisas dependem dos olhos com que as vemos.
Sempre reivindiquei uma universidade melhor, já que sinto
como se tudo ali fosse um pouco meu, afetivamente falando. Lembro-me da vez em
que nosso PPGEDU retomou o conceito 6 da CAPES outrora perdido, e o que para
muitos seria só um número, para mim foi o retorno ao lugar de onde não deveríamos
ter saído, e eu que fiz parte dos que lutaram por isso, me emocionei como se
fosse minha família que tivesse sido contemplada.
Por lá fiz muitos amigos e não há um dia que eu circule pela
Faculdade de Educação que eu não encontre alguém que eu goste ou que me recebe
com um sorriso verdadeiro. É uma pena que não tenha guardado na memória visual da
fisionomia de todas elas que levarei sempre dentro de mim. Discordei de muita
gente, a maioria fez com que eu crescesse como pessoa e como pesquisador por me
incentivarem a ser melhor do que fora. Outros que passaram do limite do
aceitável, desses nem lembro mais.
Depois de todo esse tempo, amanhã, dia 16 de dezembro de
2014 será meu último dia de aulas antes da defesa do doutorado. Aprovado ou
não, as aulas - como aluno - na UFRGS se encerrarão para mim. Nunca mais vou
reclamar das cadeiras desconfortáveis, ou do equipamento que não funciona ou da
falta de acessibilidade na biblioteca.
Porém, eu também nunca mais vou levantar no dia mais chuvoso
e frio do ano com alegria pelo simples fato de ir à UFRGS. Não vou mais ter o convívio
diário com tanta gente que me faz bem e que já são amigos para todo sempre. Não
vou mais vivenciar cenas engraçadas e tristes como gostava de acompanhar. Não vou
mais poder dizer um simples: “até amanhã então...”
Poderia ficar aqui horas escrevendo sobre como esse tempo
todo mudou a minha vida. Mesmo sendo mestre e quase doutor, sinto-me com animo
de ir em frente como se eu ainda fosse aquele menino impetuoso de 22 anos. No
entanto, agora tenho também a sabedoria e a serenidade de 32 primaveras
vividas. Sei que tenho muito ainda para realizar pela vida, mas eu jamais me
esqueço de onde venho, e a UFRGS é e será a minha casa.
Não sei como vai ser daqui para frente, se e onde vou
trabalhar como docente ou outra surpresa que a vida possa me reservar. Quem
sabe um dia eu possa retornar como professor, o que muito me honraria para o
resto da vida. O que eu sei no momento é que tenho que me despedir por
enquanto, e para usar um clichê que se aplica perfeitamente nesse caso, digo
que saio da UFRGS, mas em momento algum ela sairá de dentro de mim...
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