Apenas pessoas próximas sabem dessa história que tenho a
revelar. Não que eu tenha algum problema com ela, pois apesar de ser a vítima,
sou de todos os envolvidos, o que sabe melhor lidar com ela. A vontade de
contar isso talvez venha do fato de estar morando em Barcelona, e ser a capital
europeia com o maior número de motos. Isso me faz lembrar diariamente dos
acontecimentos que irei compartilhar.
Era uma
segunda-feira, dia 24 de Abril de 2000. Uns dois dias antes, tive uma decepção
com um amigo e não estava lá muito legal. Mas era um dia depois da Páscoa e os
chocolates me ajudavam a superar o fato.
Também era meu primeiro semestre na faculdade de História, e isso me
deixava muito motivado e feliz por frequentar um curso que eu gostava tanto.
Como
sempre, fui para a aula caminhando, já que a faculdade ficava perto de onde eu
morava e eu sempre gostei de caminhar e ir refletindo sobre a vida. Não tenho
muitas lembranças daquele dia, apenas sei de muitas coisas pelo que me contaram
depois. Conforme me fora dito, tínhamos aula de Sociologia I, e não sei por
qual motivo fomos liberados da aula mais cedo, por volta das 16 horas, conforme
os colegas me contaram.
Então, fui
para casa a pé como fazia todos os dias desde que começaram as aulas. Como de
costume, esperei o sinal abrir para os pedestres e atravessei a rua (dessa
parte eu tenho pequenos fragmentos de recordações). Infelizmente, um
irresponsável de um motoqueiro resolveu ir mais rápido do que deveria e
ultrapassar o sinal vermelho, o resultado é que o sujeito me acertou em cheio.
Como eu já
estava quase do outro lado da rua e a batida me fez voar para frente, por cerca
de 30 centímetros não bati a cabeça no meio-fio da calçada, e provavelmente
seria meu fim. Com o impacto da batida eu desmaiei, mas segundo contaram testemunhas
eu tive a sorte ou sei lá o que de colocar a mão na frente do rosto na hora de
cair, e a batida na cabeça foi amortecida.
Tudo está
documentado em algum prontuário policial ou da empresa de transito - perdido em
um arquivo. Dizem que eu acordei alguns instantes, o suficiente para dar meu
endereço ao policial que fazia a ocorrência. Desse modo puderam ir até minha casa
avisar o que tinha acontecido.
Apenas o
meu irmão que na época tinha 13 anos estava em casa, e o telefone estava
estragado. Além de ficar assustado, ele teve que pensar rápido e ir até a casa
de minha avó, onde havia um telefone que funcionava. Assim, pela primeira e
única vez meu maninho andou em um camburão da polícia. Na mesma hora, avisaram
o meu pai que estava trabalhando e foi corendo para o pronto socorro para onde
eu seria levado.
Nesse meio
tempo eu acordei. Lembro que recobrei os sentidos e senti que precisava cuspir
algo, que entre muito sangue, percebi que havia todos os cinco dentes da parte
frontal da boca. Isso me deixou um tanto assustado, mais ainda do que eu
estava. Sentia muitas dores nas mãos e no rosto. Mesmo assim, ainda perguntei
aos enfermeiros para onde eu estava indo e se tinham avisado meus pais.
No meio do
caminho, escutei uma batida muito forte e em ato continuo me levantei mesmo com
aquele colete cervical pesadíssimo. Ainda não tinha visto o que aconteceu, mas
olhei para trás e vi que algo pontiagudo havia cravado a maca bem onde era para
estar o meu pescoço. A única coisa que a enfermeira conseguiu dizer Foi: ”teu
anjo da guarda te salvou pela segunda vez hoje guri”. Fiquei tão apavorado que
emudeci – o que para um tagarela como eu é algo quase impensável.
Segundos
depois, soube que uma moto tinha batido em alta velocidade na ambulância em que
eu estava, e por isso alguns aparelhos quebraram e voaram lá dentro.
Infelizmente, o motociclista havia ficado muito ferido na batida, e como
sabemos não há tantas ambulâncias assim na cidade, imaginem a mais de uma
década.
Isso gerou
um fato que seria cômico se não fosse trágico. A enfermeira que estava me
atendendo correu para ver como estava o motoqueiro atingido e uns cinco minutos
depois voltou para me dizer: “tens que tomar uma decisão, eu não posso te
obrigar a nada, mas, o motoqueiro que bateu na gente está muito mal, e precisa
ser atendido logo, queríamos saber se aceitas sair da ambulância e esperar
outra para que o levemos no teu lugar?” Eu não tive dúvidas em aceitar.
Por isso,
fiquei no meio-fio da calçada durante um tempo conversando com a atendente e com
muita dor no rosto e nos braços com as roupas esfarrapadas. Lembro que sentia
como se meu rosto tivesse o dobro do tamanho normal e sangrava bastante pelos
ferimentos internos na boca o que me deixava com uma sensação ainda mais
desagradável. A adrenalina ia baixando e a dor aumentando, e muito.
Lá pelas
tantas, chegou outra ambulância e fui para o hospital receber tratamento adequado..Chegando
lá, eu encontrei o meu pai me esperando em certo desespero pois chegara
primeiro do que eu. Teve muito alívio ao me ver, mas não maior do que o meu.
Foi
engraçado que ele tentava falar comigo tentando me consolar e fingir que eu não
estava com o rosto todo arrebentado. E, eu tentava tranquilizar ele dizendo que
estava tudo bem, mesmo sentido dores terríveis. Sim, hoje eu consigo achar
graça em tudo isso.
Depois de
terem me levado para fazer uma peregrinação por quase todas as salas de exames
do hospital, fui levado até a emergência dos politraumatizados para fazer as
suturas necessárias. Fiquei sabendo iria passar a noite no hospital em
observação.
Havia
apenas uma vaga naquele momento, e fui colocado como o “paciente 10”. Enquanto
os médicos tricotavam a minha boca ouvia algumas conversas dos funcionários no
entorno, primeiro porque isso me fazia sentir menos dor, e segundo porque meu
ouvido desenvolvido me ajuda nisso.
Eis que
ouvi uma mulher comentando que o “09” era de uma gangue e tinha ficado ferido
em uma briga de traficantes, e que já tinham chamado reforço da polícia porque
tinham medo que seus companheiros fossem resgatá-lo ou que os adversários
terminarem o serviço.
Fiquei
pensando que o sujeito estava imediatamente ao meu lado, e esse pessoal não
quer nem saber quem está por perto e não tem nada a ver com isso. Dai sim, me
bateu um baita pavor. Eu conversei com a enfermeira e disse que não ficaria ali
mais um minuto sequer. Depois de muito eu incomodar e de provar que tinha
auxiliares de enfermagem na família que cuidariam de mim, consegui liberação.
Duas horas
depois e com a recomendação expressa de não dormir e de no primeiro sintoma
correr de volta pra lá, eu sairia do hospital. Nesse momento eu já estava com a
boca e o queixo todo suturado em um total de 13 pontos – e um inchaço tão
grande que o lábio superior tocava a ponta do meu nariz-, com a mão esquerda
enfaixada e muitas escoriações no rosto e nos braços e pernas.
Com certa
dificuldade, coloquei a roupa e fui saindo pela porta. Quando a abri, para
minha surpresa e em ato contínuo, o policial militar que vigiava a entrada
sacou uma arma e apontou para a minha cara. A única coisa que eu disse foi: “cara
eu não vou fazer nada, estou aqui todo fodido e ainda com uma arma na cara, que
eu posso fazer contra ti?” Como eu falei meio sorrindo, o tal sujeito pediu
desculpas meio constrangido e sorriu também.
Mais uma
porta, e encontrei com meu pai. Eu nunca tinha ficado tão feliz em vê-lo e
saber que eu voltaria para casa só com uma história para contar, além de ter
que tratar durante três meses os meus dentes e refazê-los. Naquela noite nem
que eu quisesse eu conseguiria dormir, pois até chegar em casa eu estava em
estado de alerta e não tinha me dado conta de tudo que acontecera.
Assim que
cheguei em casa e vi a alegria da minha família, me dei conta de tudo, acho que
chorei tanto que fiquei um ano sem lágrimas. Foi uma época difícil, pois eu
fiquei com medo de sair na rua. Quase um ano depois decidi que era hora de
acabar com aquilo e sai sozinho, fiz o mesmo trajeto, ida e volta, nada me
aconteceu, e assim, voltei a ir a pé para a faculdade.
Hoje eu
conto essa história como algo engraçado que me aconteceu, pois eu sempre faço
das coisas ruins um motivo para rir. Porém, lembro que eu fiquei assustado com
a possibilidade de morrer tão cedo. Por outro lado, tive felicidade de ser
visitado e receber telefonema de muita gente, e como dias antes eu me sentia o
último dos seres humanos, tudo aquilo me deu animo para continuar. Eu percebi
que muita gente me queria bem.
Portanto,
pude notar o quão efemera e boa é a vida. Procuro fazer de cada dia o mais
importante e me cuidar sabendo que muita gente sentiria minha falta. Acho que esse
episódio foi muito bom na minha trajetória, já que eu de fato nasci de novo,
muito melhor do que antes.
As marcas
que tenho desse episódio são mais do que a cicatriz que tenho no queixo, são da
grandiosidade e da fragilidade da vida. Por isso eu agradeço que essa história
tenha acontecido comigo, pois fez de mim um sujeito melhor e um dos poucos a
vencer a morte três vezes no mesmo dia.