Todos nós temos papeis individuais e coletivos a cumprir na sociedade, e como seres que vivem em comunidade, temos também responsabilidades perante os grupos a que pertencemos. Isso fica acentuado quando fazemos parte de uma minoria social, onde na maioria das vezes o comportamento de uma pessoa ou de uma entidade que representa essa parcela da população passa a representar um estereótipo ou a manutenção do mesmo.
Dentre tantos casos das chamadas minorias, me detenho aqui na das pessoas com deficiência visual, que é aquela na qual estou imerso. Não que eu não participe de outras, mas essa me toma de arrasto desde que nasci, e tenho conhecimento relevante para falar do tema. Não sei se o que irei tratar aqui se passa nos demais casos, mas o fato é que estou situando bem de onde falo e d=a qual contexto me refiro.
Muitos estereótipos são construidos a partir de uma percepção generalista equivocada sobre as pessoas com deficiência visual. Se você encontrar um cego bem humorado na rua, saiba que nem todos são assim, se trabalhar com uma pessoa com baixa visão qualificada, nem todas serão iguais. Cada pessoa tem seus próprios modos de ser e de agir, e não há ninguém exatamente do mesmo jeito, e por isso, dizer que "os deficientes visuais" agem da mesma maneira é um erro de origem.
Por muito tempo, as pessoas com deficiência tiveram como única alternativa de sobrevivência pedir esmolas nas ruas, pois a sociedade não proporcionava nada melhor, na medida em que fazia o possível para excluí-las da vida social. Num segundo momento, as doutrinas religiosas passaram a fazer da ajuda aos "deficientes" uma forma de alcançar o céu. Em ambos os casos, ficou cristalizada a ideia de assistencialismo e benevolência para com esses sujeitos.
Os séculos se passaram, a sociedade teve inúmeras transformações, mas como é comum ocorrer, certas práticas ainda continuam sendo corriqueiras, ainda que parecendo ultrapassadas. Temos políticas de inclusão consistentes, e ainda que não sejam as ideais, aumentaram o poder de renda das pessoas com deficiência, permitindo que grande parte delas alcance um poder aquisitivo que não possuíam outrora. É óbvio que muito ainda precisa ser feito para atingirmos o que é de direito para todos esses indivíduos, e para isso devemos nos mobilizar.
Por outro lado, é cada vez mais importante o papel que cada um de nós com deficiência visual tem com nossas atitudes. Temos que reivindicar nossos direitos seja numa sala de cinema sem audiodescrição ou em debates institucionais sobre políticas que nos proporcione direitos. No entanto, tais ações tomadas individualmente ainda não tem o mesmo peso do que aquelas tidas como coletivas, que tem maior exposição e circulam com maior facilidade.
Os movimentos sociais e entidades representativas das pessoas com deficiência visual ainda representam - ou deveriam - a maioria das reivindicações de necessidades e parâmetros que se deve ter com relação a essas pessoas. muitas das mudanças para melhor com relação ao modo como os videntes nos percebem, na conquistas de direitos que temos conseguido e de outros pelos quais temos lutado têm grande influência dessas associações representativas. Todavia,temos também o Onus de que se uma instituição como essa age de uma determinada forma, ainda se pensa que esse é o pensamento de todos nós.
O que me preocupa nisso tudo, sendo o cerne dessa reflexão, é que muitas associações ainda agem como se estivessem no século passado, na contramão da história. Tenho conhecimento de alguns casos em que instituições pedem dinheiro para manter-se. Não julgo a necessidade e nem o mérito, mas os efeitos que isso causa. Fica evidente a manutenção da ideia assistencialista de "pedir uma esmola para o cego", o que sem dúvidas ainda é um estereótipo que nos afeta, causando embaraço e diversas dificuldades na tentativa de demonstrar que precisamos de oportunidade e não de caridade.
Talvez isso se deva por falta de criatividade ou mesmo incompetência daqueles que gerenciam a entidade que faz esse pedido, mas não posso julgar casos específicos, pois falo de modo geral. O que eu sei, é que essa atitude de pedir dinheiro é mais problemática do que o caminho para uma solução, se pensarmos a longo prazo, que pode salvar a saúde financeira de determinada entidade, mas põe em xeque todas as conquistas que tivemos até aqui, na medida em que reforça os estigmas já existentes.
No que me diz respeito, sei das dificuldades que uma parcela importante das pessoas com deficiência ainda tem para sua subsistência, bem como das peculiaridades da vida d cada um. Contudo, me irrita muito notar que o esforço que muitos de nós cegos e baixa visão fazemos para desconstruir a imagem de comiseração é colocada por "água abaixo" diante dessas campanhas de "esmolagem".
Lutamos constantemente para provar que temos capacidade, que se nos forem dadas as condições somos competentes e podemos atingir os objetivos por nossos méritos e sem ajudas assistencialistas. Ao mesmo tempo, vemos que movimentos que deveriam incentivar essa consolidação da autonomia, preferem acentuar a sensação de dependência de outrem. Atos e instituições como essas não me representam,para usar um jargão atual. O que me deixa certa esperança, é que esses modos de gerir são feitos por pessoas, e essas pessoas um dia passam e as entidades ficam, de modo que tenho certeza que em algum momento dias melhores virão. Ainda assim, os efeitos causados podem ser dificeis de reparar.
Seja como for, simplesmente agir como séculos atrás e "pedir dinheiro" é um retrocesso, embora seja o trajeto "mais fácil". Porém, nós cegos e com baixa visão sabemos que nem sempre o caminho mais curto é o mais seguro, pois podem estar repletos de obstáculos que nos impedem de chegar ao destino sem problemas. Enquanto rumar pelo trajeto mais seguro, ainda que mais leve mais tempo e dispensa mais energia, certamente nos proporciona bem mais benefícios, com passos que nos farão avançar mais consistentemente. Basta usar dos conhecimentos de orientação e mobilidade e de um pouco de sabedoria para perceber isso.
Enfim, espero que com o passar do tempo nossos movimentos sociais tenham pessoas bem intencionadas e que tenham competências e habilidades necessárias para levar adiante nossas lutas. Que não se queira tomar o poder apenas pelo regozijo que o mesmo proporciona à alguns. Que ao invés de reforçar, possamos ter a capacidade de dissolver estereótipos e estigmas que só atravancam o nosso caminho.