No último dia 14 de março ocorreu a Aula Magna da UFRGS,
tendo o famoso fotógrafo Sebastião Salgado como ministrante. É sempre bom
quando a universidade possibilita à comunidade acadêmica oportunidades dessa
magnitude, que além de agregar conhecimento para a profissão, são fundamentais
para o crescimento pessoal de todos que podem estar presente. Mas,
infelizmente, nem todos puderam ter acesso pleno a esse evento tão grandioso.
Alguns
amigos com deficiência, colegas e até ex-alunos me perguntaram o que eu achava
de não haver audiodescrição no evento. Primeiro que fiquei feliz em ser
questionado sobre o fato, pois isso demonstra que já há bastante gente consciente
da necessidade desse recurso para que o público com deficiência visual possa
acompanhar em igualdade de condições os eventos da universidade. Segundo, como
vocês sabem eu estou em Barcelona e por isso não pude responder a essa pergunta
diretamente.
Soube que
houve a tradução da palestra para Libras, o que eu considero muito importante.
Não sou daqueles que só luta em causa própria, embora eu não seja surdo, fico
feliz quando suas especificidades são contempladas, e inclusive luto por elas
quando possível. Da mesma forma, espero que proximamente haja união entre os
diversos movimentos sociais dentro da universidade, para que os direitos das
pessoas com deficiência visual também sejam contemplados.
Os
questionamentos que me trouxeram as pessoas que referi me fizeram refletir
sobre muita coisa, e antes que me digam que esse é um fato isolado e pequeno
perto de outros maiores, eu retruco dizendo que é a gota do copo repleto de água.
O problema não é a inexistência de audiodescrição nos eventos oficiais da
universidade, mas sim, as justificativas que, vivendo e estudando em outra cidade,
eu percebo ainda mais rasas do que imaginava quando vivia em Porto Alegre.
Querendo ou
não, estudando na Universitat Autonoma de Barcelona, descobri que todo tipo de
acessibilidade que me diziam ser “impossível” aqui são efetuadas com
naturalidade inquestionável. Então, porque não houve audiodescrição no evento e
na exposição do fotografo?
Não sei
exatamente os motivos, mas algumas coisas mesmo de longe é possível
problematizar. Certamente, pró-reitorias e departamentos envolvidos sabiam que
essa aula e a exposição de Sebastião salgado fariam parte da programação desse
ano, assim como há aulas inaugurais todos os anos. Sabendo disso, porque então
não pensar em prover acessibilidade plena no evento? Existiu tempo hábil para pensar
nessa questão, bem como o recurso de audiodescrição não é tão desconhecido
assim da universidade, afinal, ano passado foi feita uma formatura com esse
recurso.
Contudo, a
referida formatura foi feita buscando suprir uma demanda individual de uma
aluna, que tinha uma irmã com baixa visão. E eis o problema que também é um
entrave para a sistematização da acessibilidade plena na universidade, a
individualização das ações. Não há planejamento estratégico para a implantação
dessas necessidades. Todas as iniciativas ainda ocorrem por projetos e
solicitações de cada sujeito.
Se um aluno
precisa do recurso, ás vezes ele é provido, se um servidor leva adiante um
projeto de acessibilidade o comando do mesmo fica apenas em suas mãos e caso
ele decida optar por outros caminhos, as atividades cessam e retornamos à
estaca zero. E quando as ações são pessoalizadas e esporádicas elas não ficam raízes
e não criam uma cultura na instituição, que é exatamente do que precisamos.
Para ser
coerente com o que estou dizendo, minha reflexão e minha critica não tem um tom
de individualizar o que entendo serem posturas equivocadas, mas pensar sobre o
todo de nossa e de outras universidades brasileiras. Falo da UFRGS por ser a
realidade que eu conheço, por considerar essa universidade uma extensão da
minha casa e da minha vida, e por isso mesmo quero o melhor para ela..Entre a
graduação, mestrado e doutorado, estudo lá a dez anos e tenho afeto pela
instituição e por algumas pessoas que nela atuam.
O fato de
não haver audiodescrição nas cerimônias públicas e demais eventos culturais da
universidade é só um disparador para uma questão maior, que corresponde a
construção do que eu e outros tantos ativistas temos chamado de “cultura de
acessibilidade”. Isso não é algo fácil de alcançar, mas é preciso começar. Isso
se efetivará quando TODAS as atividades forem planejadas desde sua concepção com
os recursos de acessibilidade, e não pensar nos mesmos na hora que as demandas
aparecem.
Quando
chegarmos a esse ponto, não ouviremos mais: “não há recursos” ou “acessibilidade,
nunca pensei nisso antes” e por fim, o argumento que mais me tira do sério: “não
há público que valha a pena o investimento”. Todas essas justificativas já ouvi
em diferentes situações e instancias da universidade. Uma pessoa que seja que
se beneficie de audiodescrição nessas ocasiões já vale a pena todo e qualquer
investimento, porque sensações não tem preço. Uma cultura acessível não é a que
supre necessidades, mas a que apresenta diferentes possibilidades, que não age
no atropelo, mas pelo acolhimento.
Não sei se
certas incompetências – e prefiro usar esses a outros adjetivos – fazem parte
apenas do que diz respeito à acessibilidade, mas às vezes me parece que há o
entendimento de que audiodescrição, rampas, pisos táteis e outras coisas são
tomadas como secundárias ou até dispensáveis. Ou, tão nocivo quanto isso, a
ideia de que por ser um “benefício” eu devo ficar satisfeito com as migalhas de
acessibilidade que por ventura me ofereçam.
Perdoem-me
discordar, mas acessibilidade não é caridade, não é voluntariado, é sim um
DIREITO de todo e qualquer cidadão que sinta necessidade de seu provimento. Sendo
assim, devem ser tratados com semelhante comprometimento, profissionalismo e
seriedade das ações que tragam convidados famosos ou que deem visibilidade às
universidades e outras instituições.
Existem
muitas pessoas compromissadas e programas exemplares na UFRGS, como o Programa
Incluir, por exemplo, sem o qual eu não teria conseguido chegar até aqui e onde
encontro o meu “porto seguro” quando tenho necessidades específicas de
acessibilidade em meus estudos. Há problemas, mas todos são ultrapassados com
competência, conhecimento e acolhimento, por seus membros. Por isso, o Incluir
é o único lugar na UFRGS onde me sinto “em casa”.
Escrevo
esse texto – não querido leitor, eu não me perdi no tema – refletindo sobre os
questionamentos apontados logo no princípio e me recordando do que aconteceu
apenas uma semana depois que cheguei à Barcelona.
Assim que
encontrei Pilar Orero, minha orientadora na UAB, disse que dois dias depois
haveria uma cerimônia de Aula Magna e concessão de título de Honoris Causa, além de outras homenagens
a estudantes. Esse evento teria audiodescrição, como sempre acontece desde
1999. Perguntei a ela se havia público para esse recurso, e prontamente me respondeu
que não sabia, mas que como a cerimônia era pública o serviço deveria ser
prestado pois poderia aparecer alguém que quisesse usar. Lógico, lá estava eu
no dia e hora marcados.
Mais do que
isso, a audiodescrição é transmitida pela rádio da universidade, o que
possibilita a quem não teve oportunidade de estar presente, também ter acesso
ao conteúdo completo da cerimônia. Quando perguntei sobre o custo de tudo
aquilo ela me disse: “não é baixo, mas regimento se cumpre”. Como assim
regimento?
Dias
depois, tive acesso a um documento que tem força de regimento e que trata das
questões das minorias sociais. Dentre elas, as pessoas com deficiências e
necessidades especiais. Pois bem, dentre tantas disposições, uma chamou-me a
atenção, se um docente, diretor de departamento ou os responsáveis pela
estrutura e mobilidade da universidade não proverem os recursos de
acessibilidade, esses serão responsabilizados e penalizados de acordo com o
previsto no regimento.
Primeiro,
que acessibilidade fazer parte do regimento acadêmico é algo que nem em meus
maiores sonhos pensei ver. E, segundo, que o tema é tratado com a importância devida,
e quem não o tratar como tal terá de arcar com as consequências. Uma cultura se
cria com consciência e educação, mas se isso não adiantar, as sanções são a
solução.
Talvez por
isso, tudo aquilo que me diziam ser impossível eu vejo sendo aplicado com
naturalidade por aqui. Em 1999, foi publicado o Regramento de igualdades de oportunidades para as pessoas com
necessidades especiais. Não há
desorganização, “erros de comunicação”, privilégios ou “pessoalização” das
ações de acessibilidade, e sim, o cumprimento do respectivo documento.
Portanto
tenho certeza que um dia isso vai mudar. Quiça, na próxima Aula Magna,
exposição fotográfica ou qualquer outra programação da difusão cultural da
universidade, a acessibilidade – e especificamente, a audiodescrição - será implementada adequadamente e os agentes
que atuam nessas áreas já terão um plano consolidado sobre o tema, e que nunca
mais as pessoas com deficiência ficarão à margem das cerimônias e demais
eventos, afinal, como diz o cancioneiro:
“é preciso ter manha,
é preciso ter graça
É preciso ter sonho
sempre
Quem traz na pele essa
marca
Possui a estranha
mania de ter fé na vida”.