segunda-feira, 31 de março de 2014

Tropeçando nas lembranças



Por onde andarás tu?
Pegadas apagadas com o tempo.
Rastros solapados meu desejo acende.
De um amor que mesmo distante.
É cada dia mais latente.

Caminho pela rua tão soturna.
Tropeço nas lembranças tuas.
Lentamente vou fenecendo.
Sofrendo teu desprezo desmedido.
Aumenta meu amor incontido.

Estaria ao meu lado se eu fora sincero?
Sem tentar conquista sorrateira.
Tendo me declarado profundo e direto.
Quiça teria migalhas do teu sorriso.
Nem teria ido e levado minh’alma contigo.

Nesse dia de chuva.
Vejo pessoas tristes caminhando.
A tristeza é delas ou de quem está olhando?
Não sei se chove.
Ou se sou eu que estou chorando.

Se aqui tu estivesse agora.
Verias que sou melhor do que outrora.
Queria estar contigo novamente.
Ainda que só tendo gotas de tua piedade.
E um sorriso dissimulado de amizade.

Perdoe por não te fazer amar-me
Não posso arrancar o sentimento que me arde.
Tua recusa é o combustível.
Para manter meu amor vivo.
Justamente por ser inatingível.

sábado, 29 de março de 2014

E se eu fosse você?

Nos últimos dias, dois fatos me deixaram bastante assustado e lamentando muito o rumo que a sociedade brasileira está tomando. No primeiro, duas ciclistas morreram atropeladas no mesmo dia por ônibus do transporte coletivo de Porto Alegre. O segundo, o resultado de uma pesquisa onde mais de 65% dos homens entrevistados dizem que mulheres com roupas curtas merecem ser estupradas.O que há de errado conosco?
Quando as duas jovens ciclistas foram mortas pelos motoristas de ônibus, os olhares se voltaram para os perigos do transito da cidade. Nada muito novo para quem vive em Porto Alegre. O mais surpreendente é que alguns gestores da prefeitura, parte da imprensa e manifestações nas redes sociais culpabilizaram as vítimas, dizendo que “não quer perigo? Parem de pedalar”, como se as ruas fossem de propriedade absoluta dos carros.
O pior de tudo foi ver que em nenhum momento se pensou nas vítimas e em suas famílias como a prioridade. Nas manifestações oficiais e na imprensa, pouco ou nada de condolências e solidariedade, e muito de ilações sobre as responsabilidades das ciclistas. As pessoas esquecem que por trás – ou na frente – de cada estatística há sempre pessoas, familiares e amigos, mas isso às vezes se apaga.
Na segunda notícia, a pesquisa com 65% dos homens respondendo que mulheres com roupas curtas mereciam ser estupradas, e que mulheres agredidas não deveriam ir à polícia. Que sociedade estamos construindo? O que faz com que haja tanta gente imbecil e com esse desejo de violência pura e simples? Já é passada a hora de o brasileiro jogar no lixo a sua cultura escravocrata, onde acha que negros e mulheres ainda são considerados como propriedades suas e/ou seres inferiores.
Cada pessoa tem que ter o direito de agir, vestir, sentir como quiser, desde que esteja dentro da lei. Ninguém tem o direito de pensar ou executar uma violência contra quem quer que seja, mais ainda por uma vestimenta. Fico pensando se esses estupradores em potencial que responderam a essa pesquisa tem mãe, irmã, namorada, filha? E se fosse com alguma delas, o que eles sentiriam?
Cadê a tão decantada tolerância do brasileiro?. Acho que esse mito está sendo desfeito do jeito mais triste possível. Isso porque, com o passar do tempo e com a emergência das redes sociais, cada vez mais o país se mostra uma multidão conservadora e preconceituosa. As redes sociais se tornaram terreno fértil para manifestações radicais e intolerantes, e não sei onde isso vai parar, mas não será num bom lugar - esse é outro assunto.
O que esses dois fatos tem em comum? Muita coisa. A principal delas, a incapacidade cada vez maior de as pessoas se colocarem no lugar das outras. Porque é tão difícil pensar no próximo como alguém que tem particularidades, sentimentos, direitos, deveres, enfim, uma vida? O que tem nos levado a ser assim tão insensíveis? Infelizmente, eu não tenho as exatas respostas para essas questões.
O mais contraditório é que muito se têm saudado a emergência da diversidade e a “consolidação das minorias” no Brasil. Alguns apontam fatos isolados como exemplo de que estamos em uma sociedade aberta às diferenças e que estamos mais tolerantes. Tudo uma falácia.
O que eu percebo é que as minorias têm vivido de migalhas dadas pelas consideradas maiorias. Beijo gay na novela, pessoa com deficiência no meio acadêmico, mulher na presidência da republica e tantas outras demonstrações da “diversidade” do nosso povo, nada mais são do que gotas para quem merece um oceano. Deixa-se que umas poucas pessoas das minorias tenham algum sucesso para demonstrar a nossa bondade e tolerância, e não por uma mentalidade de respeito pela diferença.
Meu amigo Carlos Ely está mais do que certo ao dizer que a maior “herança” dos protestos do ano passado foi a demonstração e radicalização do conservadorismo brasileiro, ao menos, da classe média. Pois é, isso representa que as pessoas não entenderam absolutamente nada sobre aquilo que a parcela dos manifestantes que começou tudo queria dizer.  Seja como for, não temos diversidade, temos a tentativa de enganar alguns de que isso está em curso, quando na verdade, está piorando o preconceito.
O remédio para essa doença que parece terminal eu não sei qual é, mas acho que doses irrestritas de empatia não fariam mal nenhum. A atual juventude – às vezes mais conservadora que a geração anterior – talvez seja difícil de modificar, mas se começarmos a implantar nas escolas, em nossas casas e nos nossos comportamentos a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, quem sabe em um dia não tão distante isso poderá mudar.
Ninguém é obrigado a gostar de mulheres com roupas curtas, nem a ter apreço por pessoas que se locomovem com bicicletas, mas tem o dever de respeitar o direito e o espaço do outro. Mais do que isso, seriamos tão mais felizes se cada um de nós aprendesse como se posicionar no lugar de cada pessoa com quem convive. Isso não é uma coisa que “os políticos” tenham que fazer por nós. A empatia é uma atitude fundamental para o bem-estar de todos, e algo que só depende de nós mesmos.
Por mais que às vezes eu ache uma tarefa impossível, eu vou continuar lutando até o fim dos meus dias para que as pessoas entendam a beleza que é conviver e partilhar com o diferente. Perguntar-se “se eu fosse você?” é algo óbvio, porque querendo ou não, nós somos e estamos no outro. Sem a alteridade não seriamos quem somos. Acredite ou não, sempre há um pouco de nós em outrem, e vice versa também.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Bengalando em Barcelona (Visita ao Palau de la Música)

Desde sempre música foi uma das coisas que eu mais gostei na vida. Ao contrário do estereótipo de que toda pessoa com deficiência visual é boa para tocar algum instrumento, eu só sei apreciar as canções. Também sempre gostei de artes visuais, embora a falta de visualização perfeita me atrapalhe esse prazer quando não há audiodescrição. No Palau de la Música pude ver que essas artes que me encantam estão juntas. Um dos lugares mais emblemáticos do mundo em termos de casa de espetáculos e uma das construções mais ricas, coloridas e repletas de formas diferentes. Nesse clima de êxtase é que visitei esse lindo e histórico lugar.
Chegar até Palau de la Música não é uma tarefa fácil nem mesmo para quem enxerga. Há uma linha de metrô que deixa relativamente perto, mas é necessário fazer diversas curvas e atravessar ruas movimentadas sem sinalização adequada. Ainda assim, ir até lá é menos difícil do que saber como entrar no local.
As entradas não são sinalizadas corretamente, e muitas pessoas se perdem - inclusive eu e minha esposa Patrícia. A bilheteria é em uma das laterais e n;ao na parte central, mais que isso, a visita guiada – único modo de conhecer o Palau – inicia pela cafeteria, que por ser grande e não indicar por qual das entradas começa a visita, atrapalham se por acaso uma pessoa cega ou com baixa visão estivesse sozinha.Talvez por esse motivo, o valor do ingresso para pessoas com deficiência seja praticamente gratuito.
As visitas guiadas ocorrem  em diferentes idiomas, cada um em horários específicos, e se por acaso o usuário chegar muito antes terá o desconforto de ter que esperar pela visita em seu idioma, e se chegar quando a visita na língua que gostaria de ouvir tiver começado, ou não verá tudo, ou perderá seu tempo tendo ido até lá. Não há indicação clara no site ou mesmo no local de que as visitas são em horários restritos e em idiomas diferentes. Assim, é um equivoco na acessibilidade para todo o público.
Depois de algum tempo aguardando, o que não foi um problema por nos proporcionar contemplar a beleza do lugar, a visita guiada começou. Todos que participavam foram acomodados na sala de ensaios, em um formato de auditório. Sentamos nas poltronas e assistimos a um vídeo institucional contando a história do Palau de la Música, assim como fazendo referência à vida da cidade e do arquiteto Muntaner, seu idealizador.
Alguns artistas deram seu depoimento sobre a emoção de se apresentar naquele majestoso ambiente. Alguns deles falavam em espanhol e outros em catalão, o que facilitava o entendimento, enquanto outros falavam em inglês. Todos eles tinham legendas, mas como as letras eram muito pequenas perdi parte das informações, como o depoimento e o nome dos músicos citados.
Subimos até os demais andares onde havia a sala principal e a parte onde a plateia assiste aos espetáculos acima do palco, uma espécie de galerias superiores – ainda que tenham exatamente esse formato. Percebi que as escadas não tinham materiais antiderrapantes e para piorar era feitas de material de fácil derrapagem. Degraus com cores claras dificultaram minha movimentação, e podem ser um tanto perigosos. Existem elevadores, mas não os conheci e por isso não posso avaliar, mas não parecia haver em lugar algum adaptação para pessoas com deficiência física ou mobilidade reduzida.
Por outro lado, a narração do vídeo foi muito importante por realizar uma série de descrições detalhadas das diferentes salas do Palau. Não há audiodescrição, mas a guia que nos conduziu pelos diferentes ambientes foi muito eficiente e competente quanto a essa tarefa. Além de contar um pouco mais da história e dos artistas que passaram por ali, descreveu muito bem os detalhes dos vitrais, das esculturas e da iluminação da sala principal, o que me fez compreender e sentir toda a atmosfera de sensibilidade e riqueza artística.
Foi importante contar com essas descrições – ainda que seja feita por um audiodescritor – já que a visualidade da sala é tão fundamental que muitos dizem até que é um “deleite para os ouvidos e para os olhos”. O meu deleite veio apenas pelos ouvidos, e pelas palavras que me levaram a imaginar tudo aquilo que as demais pessoas viam.
Não há muitas salas para visitar, são apenas dois andares, bem como se caminha pouco pelos ambientes das salas, como é normal em museus e outros espaços culturais, talvez por se tratar de uma casa de espetáculos. Assim, a visita guiada é um tanto breve, com duração de no máximo meia hora, e mesmo sendo um ponto turístico muito visitado o tempo que se tem para apreciar é pequeno e logo somos conduzidos à saída.
Para quem gosta de música e artes visuais, o Palau de la Música Catalana é realmente um templo, já que além de terem passado por lá alguns  dos mais importantes artistas do mundo, a beleza arquitetônica, dos vitrais e das esculturas são sensacionais. Falta apenas que existam algumas - não poucas – adaptações para haver acessibilidade plena. Quando e caso isso aconteça, além de belo, será um palácio acolhedor para todos.
 
Descrição da foto.
Felipe Mianes no Palau de la Musica Catalana no centro da foto, próximo ao peitoril do mezanino. Veste camiseta azul clara com estampa, sob camisa xadrez preta com branco aberta, calça jeans e tênis branco. Ao fundo e na parte inferior se vê o palco e as cadeiras da plateia. Nas laterais três níveis de cadeiras distribuídas nos mezaninos do local. Vitrais ao redor de todo o Palau e detalhes esculpidos nas colunas internas que circundam o palco compõe o local. No alto um grande lustre de cristais em tons predominantes de amarelo e azul arremata o ambiente rico em arte.
Fim da descrição
Por Liliane Birnfeld

terça-feira, 18 de março de 2014

Bengalando em Barcelona (Visita ao Teatro Liceu)



Para chegar até o teatro é de certa forma uma tarefa fácil, pois há uma estação de metrô – Estação Liceu da linha 3 – praticamente em frente. Mais que isso, além das estações serrem acessíveis, quando se sobe para a superfície, estamos na Rambla, que além de um dos pontos turísticos mais conhecidos da cidade, é um grande passeio público, no qual a amplitude permite uma circulação segura.

Encontrar a bilheteria não é uma tarefa tão fácil assim, ainda mais se quisermos comprar ingressos para a visita guiada, pois não ficam no mesmo espaço. Então, há certa dificuldade de localização de onde adquirir os ingressos, bem como a entrada não tem sinalização adequada para uma pessoa com baixa visão. Para as pessoas cegas menos ainda, já que não há piso tátil ou qualquer painel ou placa em Braile dentro de todos os ambientes que visitei.

O teatro é muito conhecido na cidade e um dos famosos pontos turísticos mais conhecidos e visitados da cidade. Contudo, as visitas guiadas são feitas apenas às 10 horas, ou seja, dificulta para grande parte do público da cidade, que nesse horário está trabalhando, e diminui a quantidade de turistas que o veem. A limitação nos períodos de visita também são problema de acessibilidade, já que o conceito de acesso é para todas as pessoas e não só para aquelas com deficiência, e nesse caso, é algo difícil.

A visita guiada é feita em espanhol e começa no hall de entrada do teatro, onde pude perceber alguns recursos que possibilitam às pessoas com deficiência física e mobilidade reduzida subir à outros andares por meio de equipamentos de elevação junto às escadas. Isso há em quase todos os lugares onde existem escadas. Também existem algumas rampas com a angulação correta, embora nenhuma delas com corrimão que auxiliem no apoio do usuário.

Os espaços existentes são amplos e possibilitam uma circulação fácil e rápida pelos diferentes ambientes do teatro. A iluminação é boa e ajuda a quem tem baixa visão localizar portas de entrada e saída, bem como auxilia a leitura dos painéis existentes dos salões que circundam a sala de espetáculos. Isso pois, há diversos painéis contando a história do teatro, todos eles bastante acessíveis, com os textos na altura adequada, com letras bem grandes e com luzes e contrastes que permitem ao usuário com baixa visão a ler com tranquilidade o que está escrito.

Fomos conduzidos também a conhecer espaços onde funcionam confrarias, clubes e outros espaços privados para um pequeno grupo de usuários, cujo a marca é  o luxo e a suntuosidade da decoração e do conforto e design do mobiliário, em que a maioria deles se pode tocar.  Há muitas obras de arte doadas, compradas e até cedidas para esses clubes, muitas delas retratando períodos históricos da aristocracia barcelonesa que comparecia com frequência ao teatro.

Pude ter acesso a isso diante do que nos contava a guia, que na medida do possível fazia descrições detalhadas de muitas coisas para mim, muitas delas foram tão pormenorizadas que me ajudaram muito a entender o que as pessoas viam. Nas vezes em que a guia não descrevia, Patrícia – minha esposa que sempre me acompanha realizava as descrições – proporcionando que eu tivesse excelente compreensão do que havia para ser visualizado. Nesse dia,estava conosco também, os companheiros da Fundação Liberato e da incubadora Intel, de Novo Hamburgo.

Ainda antes de entrar na sala onde são apresentadas as óperas, há algumas maquetes do teatro, porém, todas elas estão envoltas por uma espessa redoma e não podem ser tocadas. Assim, quem não enxerga ou tem baixa visão não tem acesso a essas que seriam excelentes possibilidades de conhecer os espaços, as proporções e até o desenho do teatro através dos dedos. Seria muito interessante poder tocar esses objetos, que sendo replicas não constituiria nenhum problema se estivessem à disposição para tal.

Ao entrar na sala de espetáculos, uma enorme quantidade de filas na plateia baixa e cinco ou seis andares com inúmeras galerias, foi possível ter ideia da grandiosidade do Liceu e perceber porque ele é considerado bem mais do que um local onde são exibidas óperas e espetáculos líricos de sucesso. Ainda por meio das descrições da guia e da Patrícia, pude saber que existem muitas esculturas e formas de arte esculpidas pelo espaço todo, o que confere maior beleza ao iluminado local.  

Na parte superior do palco e nas laterais existem alguns telões. O que está logo acima do palco serve para exibir as legendas das traduções daquilo que não está em catalão – idioma usado no teatro. Enquanto que os telões que ficam nas laterais são usados para se visualizar os interpretes de línguas de sinais - quando há – ou para apresentar detalhes da ópera. Já nas confortáveis e belas cadeiras aveludadas e vermelhas, encontramos dispositivos que permitem a exibição das legendas das falas/cantos dos personagens, auxiliando aos surdos terem acesso ao conteúdo auditivo do espetáculo.

Antes de fazer essa visitação já tinha conhecimento de que uma vez por mês há sessões com audiodescrição das óperas exibidas no Liceu. Sobre isso falarei em outra oportunidade, assim que for assistir a uma dessas sessões e puder ter uma opinião mais embasada e completa sobre esse recurso sendo executado para seus usuários.

Portanto, considero que a acessibilidade no Liceu pode ser praticamente a ideal para pessoas com deficiência física e mobilidade reduzida, mas ainda deixa muito a desejar no que tange ás pessoas cegas e com baixa visão. São necessárias algumas adaptações em termos de sinalização, já que em ambientes como esse o que se faz necessário é a mobilidade desde a chegada até a acomodação do usuário no lugar por ele adquirido, e isso ainda precisa melhorar, embora existam recursos como o de audiodescrição por exemplo, que proporcionam acessibilidade ao conteúdo da exibição.

domingo, 16 de março de 2014

Magna acessibilidade

No último dia 14 de março ocorreu a Aula Magna da UFRGS, tendo o famoso fotógrafo Sebastião Salgado como ministrante. É sempre bom quando a universidade possibilita à comunidade acadêmica oportunidades dessa magnitude, que além de agregar conhecimento para a profissão, são fundamentais para o crescimento pessoal de todos que podem estar presente. Mas, infelizmente, nem todos puderam ter acesso pleno a esse evento tão grandioso.
Alguns amigos com deficiência, colegas e até ex-alunos me perguntaram o que eu achava de não haver audiodescrição no evento. Primeiro que fiquei feliz em ser questionado sobre o fato, pois isso demonstra que já há bastante gente consciente da necessidade desse recurso para que o público com deficiência visual possa acompanhar em igualdade de condições os eventos da universidade. Segundo, como vocês sabem eu estou em Barcelona e por isso não pude responder a essa pergunta diretamente.
Soube que houve a tradução da palestra para Libras, o que eu considero muito importante. Não sou daqueles que só luta em causa própria, embora eu não seja surdo, fico feliz quando suas especificidades são contempladas, e inclusive luto por elas quando possível. Da mesma forma, espero que proximamente haja união entre os diversos movimentos sociais dentro da universidade, para que os direitos das pessoas com deficiência visual também sejam contemplados.
Os questionamentos que me trouxeram as pessoas que referi me fizeram refletir sobre muita coisa, e antes que me digam que esse é um fato isolado e pequeno perto de outros maiores, eu retruco dizendo que é a gota do copo repleto de água. O problema não é a inexistência de audiodescrição nos eventos oficiais da universidade, mas sim, as justificativas que, vivendo e estudando em outra cidade, eu percebo ainda mais rasas do que imaginava quando vivia em Porto Alegre.
Querendo ou não, estudando na Universitat Autonoma de Barcelona, descobri que todo tipo de acessibilidade que me diziam ser “impossível” aqui são efetuadas com naturalidade inquestionável. Então, porque não houve audiodescrição no evento e na exposição do fotografo?
Não sei exatamente os motivos, mas algumas coisas mesmo de longe é possível problematizar. Certamente, pró-reitorias e departamentos envolvidos sabiam que essa aula e a exposição de Sebastião salgado fariam parte da programação desse ano, assim como há aulas inaugurais todos os anos. Sabendo disso, porque então não pensar em prover acessibilidade plena no evento? Existiu tempo hábil para pensar nessa questão, bem como o recurso de audiodescrição não é tão desconhecido assim da universidade, afinal, ano passado foi feita uma formatura com esse recurso.
Contudo, a referida formatura foi feita buscando suprir uma demanda individual de uma aluna, que tinha uma irmã com baixa visão. E eis o problema que também é um entrave para a sistematização da acessibilidade plena na universidade, a individualização das ações. Não há planejamento estratégico para a implantação dessas necessidades. Todas as iniciativas ainda ocorrem por projetos e solicitações de cada sujeito.
Se um aluno precisa do recurso, ás vezes ele é provido, se um servidor leva adiante um projeto de acessibilidade o comando do mesmo fica apenas em suas mãos e caso ele decida optar por outros caminhos, as atividades cessam e retornamos à estaca zero. E quando as ações são pessoalizadas e esporádicas elas não ficam raízes e não criam uma cultura na instituição, que é exatamente do que precisamos.
Para ser coerente com o que estou dizendo, minha reflexão e minha critica não tem um tom de individualizar o que entendo serem posturas equivocadas, mas pensar sobre o todo de nossa e de outras universidades brasileiras. Falo da UFRGS por ser a realidade que eu conheço, por considerar essa universidade uma extensão da minha casa e da minha vida, e por isso mesmo quero o melhor para ela..Entre a graduação, mestrado e doutorado, estudo lá a dez anos e tenho afeto pela instituição e por algumas pessoas que nela atuam.
O fato de não haver audiodescrição nas cerimônias públicas e demais eventos culturais da universidade é só um disparador para uma questão maior, que corresponde a construção do que eu e outros tantos ativistas temos chamado de “cultura de acessibilidade”. Isso não é algo fácil de alcançar, mas é preciso começar. Isso se efetivará quando TODAS as atividades forem planejadas desde sua concepção com os recursos de acessibilidade, e não pensar nos mesmos na hora que as demandas aparecem.
Quando chegarmos a esse ponto, não ouviremos mais: “não há recursos” ou “acessibilidade, nunca pensei nisso antes” e por fim, o argumento que mais me tira do sério: “não há público que valha a pena o investimento”. Todas essas justificativas já ouvi em diferentes situações e instancias da universidade. Uma pessoa que seja que se beneficie de audiodescrição nessas ocasiões já vale a pena todo e qualquer investimento, porque sensações não tem preço. Uma cultura acessível não é a que supre necessidades, mas a que apresenta diferentes possibilidades, que não age no atropelo, mas pelo acolhimento.
Não sei se certas incompetências – e prefiro usar esses a outros adjetivos – fazem parte apenas do que diz respeito à acessibilidade, mas às vezes me parece que há o entendimento de que audiodescrição, rampas, pisos táteis e outras coisas são tomadas como secundárias ou até dispensáveis. Ou, tão nocivo quanto isso, a ideia de que por ser um “benefício” eu devo ficar satisfeito com as migalhas de acessibilidade que por ventura me ofereçam.
Perdoem-me discordar, mas acessibilidade não é caridade, não é voluntariado, é sim um DIREITO de todo e qualquer cidadão que sinta necessidade de seu provimento. Sendo assim, devem ser tratados com semelhante comprometimento, profissionalismo e seriedade das ações que tragam convidados famosos ou que deem visibilidade às universidades e outras instituições.
Existem muitas pessoas compromissadas e programas exemplares na UFRGS, como o Programa Incluir, por exemplo, sem o qual eu não teria conseguido chegar até aqui e onde encontro o meu “porto seguro” quando tenho necessidades específicas de acessibilidade em meus estudos. Há problemas, mas todos são ultrapassados com competência, conhecimento e acolhimento, por seus membros. Por isso, o Incluir é o único lugar na UFRGS onde me sinto “em casa”.
Escrevo esse texto – não querido leitor, eu não me perdi no tema – refletindo sobre os questionamentos apontados logo no princípio e me recordando do que aconteceu apenas uma semana depois que cheguei à Barcelona.
Assim que encontrei Pilar Orero, minha orientadora na UAB, disse que dois dias depois haveria uma cerimônia de Aula Magna e concessão de título de Honoris Causa, além de outras homenagens a estudantes. Esse evento teria audiodescrição, como sempre acontece desde 1999. Perguntei a ela se havia público para esse recurso, e prontamente me respondeu que não sabia, mas que como a cerimônia era pública o serviço deveria ser prestado pois poderia aparecer alguém que quisesse usar. Lógico, lá estava eu no dia e hora marcados.
Mais do que isso, a audiodescrição é transmitida pela rádio da universidade, o que possibilita a quem não teve oportunidade de estar presente, também ter acesso ao conteúdo completo da cerimônia. Quando perguntei sobre o custo de tudo aquilo ela me disse: “não é baixo, mas regimento se cumpre”. Como assim regimento?
Dias depois, tive acesso a um documento que tem força de regimento e que trata das questões das minorias sociais. Dentre elas, as pessoas com deficiências e necessidades especiais. Pois bem, dentre tantas disposições, uma chamou-me a atenção, se um docente, diretor de departamento ou os responsáveis pela estrutura e mobilidade da universidade não proverem os recursos de acessibilidade, esses serão responsabilizados e penalizados de acordo com o previsto no regimento.
Primeiro, que acessibilidade fazer parte do regimento acadêmico é algo que nem em meus maiores sonhos pensei ver. E, segundo, que o tema é tratado com a importância devida, e quem não o tratar como tal terá de arcar com as consequências. Uma cultura se cria com consciência e educação, mas se isso não adiantar, as sanções são a solução.
Talvez por isso, tudo aquilo que me diziam ser impossível eu vejo sendo aplicado com naturalidade por aqui. Em 1999, foi publicado o Regramento de igualdades de oportunidades para as pessoas com necessidades especiais.  Não há desorganização, “erros de comunicação”, privilégios ou “pessoalização” das ações de acessibilidade, e sim, o cumprimento do respectivo documento.
Portanto tenho certeza que um dia isso vai mudar. Quiça, na próxima Aula Magna, exposição fotográfica ou qualquer outra programação da difusão cultural da universidade, a acessibilidade – e especificamente, a audiodescrição -  será implementada adequadamente e os agentes que atuam nessas áreas já terão um plano consolidado sobre o tema, e que nunca mais as pessoas com deficiência ficarão à margem das cerimônias e demais eventos, afinal, como diz o cancioneiro:
é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida”.