Confesso que durante algum tempo achei que estava sendo em
vão todo o trabalho que eu desenvolvia como acadêmico e como ativista na luta
pela acessibilidade e dos direitos das pessoas com deficiência visual. Como o
meio acadêmico é um tanto restrito e os estudos sobre as temáticas que
investigo mais ainda, me sentia como se tudo que eu fizesse não chegasse e nem
tocasse aqueles que eu gostaria que fossem contemplados pela minha luta.
Lembro que não foi uma ou duas vezes em que pensei em desistir
desses estudos e seguir outros caminhos. Mas como cabeça dura que eu sou,
persisti. Depois que conheci a audiodescrição em 2010, descobri que talvez
estivesse ali uma chance de me aproximar do público com deficiência visual e
tentar fazer a vide de muita gente um pouquinho melhor.
As coisas foram acontecendo, acabei me tornando
audiodescritor além de pesquisador. Passei a ver que a audiodescrição poderia
ser esse elo que eu tanto procurava e passei a realizar projetos que dessem voz
às pessoas cegas e com baixa visão.
Eu e minha amiga, Mariana Baierle além dos projetos em AD, fizemos o documentário Olhares em 2012, retratando o acesso –
ou a falta dele - a cultura por pessoas com deficiência visual..
O Olhares foi uma
das coisas mais importantes que eu já fiz na vida. Por mais que as condições do
filme não sejam as melhores, nós conseguimos tocar o coração de muita gente,
pais de crianças com deficiência que nos procuram e dizem que não mais irão ver
seus filhos com as lentes da comiseração e da culpa, por exemplo. Nos fez conhecer
gente bacana de Salvador a Porto Alegre.
Por conta do nosso trabalho no Olhares e na Tagarellas Audiodescrição fomos chamados a participar de alguns eventos no Rio
Grande do Sul. Um deles, em um município da região metropolitana de Porto Alegre,
em que debatemos sobre AD em um seminário de acessibilidade.
Eu sempre gosto desses eventos por conhecer gente legal e
interessada no tema, além de fazer amigos cegos e com baixa visão. Por isso
mesmo, nós sempre procuramos conversar o máximo que podemos com os colegas de evento,
passar um pouco da nossa vida, dividir experiências e levar uma mensagem de
otimismo para todos.
Poucas semanas depois, fomos convidados desse mesmo município
para apresentar o Olhares num evento
literário na cidade. Muitos amigos que estiveram no seminário dias antes,
também estavam presentes, e fizemos questão de chegar bem antes da exibição do
filme para compartilhar ideias, conversar e conviver um pouco com nossos novos
amigos.
O que sempre procuramos levar de bom é a experiência de
fazer da acessibilidade uma possibilidade de acolher e aproximar pessoas. Mais
que construir rampas e pisos táteis, nosso objetivo sempre é fazer as pessoas
serem tocadas, e fazer com que esses encontros sejam momentos felizes e de
congraçamento. Afinal, não há inclusão sem acolhimento! E isso eu direi sempre.
Essa semana soube de uma história que fez valer a pena toda
minha persistência, todas as vezes em que fui adiante mesmo sofrendo com aquela
sensação de desalento que contei no inicio. Conhecemos um jovem nesses dois
eventos na cidade referida antes, muito simpático e interessado pelo
nosso trabalho.
Também pelo fato de ser cego teve dificuldades no acesso à
cultura – exatamente como nós – e ficou encantado com a AD e suas
possibilidades, além de ficar muito entusiasmado em conhecer eu e Mariana que -
às vezes contra nossa vontade – somos tidos como exemplos de conduta diante da
deficiência, por termos mestrado, profissões consolidadas e levarmos adiante
muitos projetos, e não tratarmos a baixa visão como um impeditivo, mas como mais
uma característica que nos constitui.
Por mais que não desejemos ser exemplos, muitas vezes, as
pessoas se dão conta de que se a gente conseguiu elas também podem tentar.
Conheci os detalhes que relato a seguir através de uma amiga
que temos em comum e que me contou essa história, que confesso ter dificuldade
em escrever de tanto que me tocou.
Seja como for, uma chama se acendeu no coração desse nosso
amigo, e durante alguns meses ele pode desfrutar de uma alegria ainda maior, se
interessou por muito mais coisas, viu a vida com muito mais beleza e
felicidade. Passou a buscar novas possibilidades de conhecimento e de entretenimento.
Saiu mais de casa, conheceu outras pessoas. Enfim, se tornou um cara ainda mais
feliz.
Ele se interessou por audiodescrição e começou a assistir a
filmes, ir a eventos e a ter vontade de trabalhar com esse recurso também. Mas
o que importa aqui é que esse amigo mudou sua vida, ampliou seus horizontes e
isso lhe fez muito bem. Sempre falou em mim e na Mariana com afeto, o que
sempre é uma alegria para nós dois quando as pessoas se sentem bem com o que a
gente tenta transmitir.
A parte mais chata da história foi quando a minha amiga que
relatou esses fatos, disse que o rapaz em questão teve um problema sério de
saúde e estava no hospital em condições bem complicadas e em quadro considerado
irreversível. Enquanto escrevia a primeira versão desse texto, soube que ele
nos deixou sem que tivesse a chance de pelo menos ouvir o que eu escrevi.
Coisas da vida...
Confesso que no dia em que tomei conhecimento da história, tive dificuldade em continuar a aula que estava ministrando naquele dia, pois aquilo me tocou muito, muito fundo mesmo.
Confesso que no dia em que tomei conhecimento da história, tive dificuldade em continuar a aula que estava ministrando naquele dia, pois aquilo me tocou muito, muito fundo mesmo.
Pelo que a minha amiga continuou contando, ele estava
vivendo os melhores dias de sua vida, os mais alegres pelo menos, depois que
teve contato com a audiodescrição, com nosso trabalho e com nossa amizade. Por
isso, digo a ele, amigos e familiares que esse caso representou muito na minha
vida, pois foi a sensação de recompensa por todo o esforço e dificuldades que
eu tive. Eu sempre disse que se eu conseguisse ajudar uma pessoa que fosse tudo
já teria valido a pena. E valeu! O que vier daqui em diante é lucro.
Claro que eu sou profissional e gostaria que a
acessibilidade me desse mais do que satisfação pessoal. Mas, nenhum cachê que
eu receba será maior do que saber que alguém ficou um pouco mais feliz e que de
alguma forma refez uma parte de sua vida por nossa causa. Foi pensando nisso
que entrei no mundo da acessibilidade, tentar melhorar a vida das pessoas com
deficiência. Ao descobrir que consegui um pouco disso, me sinto com a missão
cumprida, e com desejo e força para seguir adiante e lutar para que mais e mais
pessoas se sintam como eu.
Muitos poderão achar que seis meses de vida alegre é muito
pouco, mas tem gente que vive mais de cem e nunca esteve frente a frente com a
felicidade. Mesmo um segundo vivido com sorriso é melhor que uma existência
fria. Não me sinto herói por ter ajudado esse amigo e de alguma forma
contribuir para que ele tenha partido em paz, mas sei que fiz a minha parte
colocando um tijolinho na ponte da felicidade.
Não quero terminar esse texto com tristeza, embora seja
assim que eu me sinta ao escreve-lo. Gostaria de propor a troca da tristeza pela esperança, de que a acessibilidade possa chegar a muito mais
gente, que ela possa fazer a vida de outras tantas pessoas um pouquinho melhor.
Tenho esperanças que ao invés de muros, construiremos pontes, ao invés de
olhares enviesados e de preconceito, trocaremos olhares fraternos e abraços
acolhedores.
Tenho a plena certeza de que com muita luta e alegria em
fazer as coisas a gente atinge esse objetivo. Até porque, quando um dia eu
reencontrar esse meu amigo, eu possa abraçá-lo e dizer: cara nossa luta não foi
em vão, ela valeu muito a pena!