Barcelona é uma cidade linda, e disso ninguém tem dúvida. A
parte histórica nos apresenta um patrimônio sem precedentes de beleza e de
valor histórico. Suas ruas e seus monumentos do período romano formam um
conjunto inesquecível.
Enquanto isso, os bairros mais recentes, os museus, parques,
teatros, cinemas e outros equipamentos culturais, são ainda mais belos e fulgurantes.
Cada via oferece um manancial de riqueza, beleza e criatividade. Mas, em minha
opinião, o que a cidade tem de mais bonito e acolhedor não pode ser visto
facilmente, sendo algo que não se pode tocar, mas que me toca profundamente.
A capital catalã sofreu uma transformação por conta das Olimpíadas
de 1992. Era uma cidade defasada, com diversos problemas estruturais em todos
os sentidos. Era considerada ultrapassada em suas construções e em sua estrutura de conforto e funcionalidade para
seus habitantes. Foi tida por muitos como uma cidade fria, suja e decadente.
Vemos que no Rio de Janeiro, os governantes e seus comparsas
apenas se locupletam com as verbas que jorram do caixa público, e em contrapartida
nada constroem de bom, estão jogando no lixo a oportunidade de fazer uma cidade
mais moderna e com acessibilidade. Aqui, tudo foi bem diferente, se aconteceram
desvios de verba eu não sei, mas a cidade se divide em antes da olimpíada e
depois dela.
Quando os ares olímpicos bafejaram aqui, no fim dos anos
1980, começou a se processar uma revolução. Um novo e moderno planejamento
urbano surgiu, a orla foi ocupada lindamente, bairros foram construídos ou
revitalizados. Parques foram criados e reformulados, o transporte teve
incremento enorme de qualidade e quantidade. Tudo se tornou belíssimo,
funcional, e principalmente, acessível.
Quando uma cidade é escolhida para sediar a olimpíada, é
também designada para as paralimpiadas. Sendo assim, a cidade anfitriã
necessita construir todas as instalações para ambos os eventos, pois de acordo
com as regras, a paralimpiada deve ocorrer nos mesmos locais. Assim, a parcela “nova”
de Barcelona foi remodelada levando em conta a acessibilidade. Mais do que
isso, o maior mérito nesse quesito é que fizeram mais do que rampas, criaram
uma CULTURA DE ACESSIBILIDADE.
Além dos prédios, estádios e outras instalações para as
competições e sua estrutura, a cidade foi reconfigurada também em suas
diretrizes, suas culturas e em suas ações. Houve uma mobilização de todas as
esferas da sociedade e um profundo envolvimento de todos para que isso acontecesse.
Ao conhecer muitas das experiências de acessibilidade em Barcelona, percebo que
a preocupação não é apenas em fornecer acessibilidade arquitetônica.
Uma série de processos de conscientização sobre a realidade e
as necessidades e possibilidades das pessoas com deficiência foram empreendidos.
O governo da Catalunha efetivou políticas em conjunto com as associações e
demais movimentos sociais de direitos das pessoas com deficiência. Isso
significa que não foram ações feitas para,
e sim com, esses grupos.
Desde 1986, quando ocorreu o anúncio dos jogos em Barcelona,
o trabalho começou a ser feito, e com a acessibilidade não foi diferente. Ao
consultar as leis e regras sobre esse tema, verifiquei que todas elas são dessa
época. E, em vinte e oito anos dessas novas diretrizes já se pode perceber o
resultado.
Acho que é por esse motivo que há uma grande quantidade de
pessoas com deficiências transitando pelos diferentes ambientes da cidade. São
pessoas com mobilidade reduzida, cadeirantes, surdos, pessoas com deficiência
visual com bengala ou com cão-guia. A diversidade é lindamente grande.
Considera-se que uma geração tenha vinte e cinco anos,
assim, já estamos na segunda geração da “nova Barcelona”, tempo suficiente para
que esteja cintilando essa beleza de que quero falar e que poucos ainda mencionam,
algo que só o cotidiano é capaz de demonstrar e de dar a sensação de plena
satisfação.
Em minha opinião, as maiores belezas de Barcelona - e que eu
não esquecerei nem no último dia da minha vida - são a autonomia e o respeito
que são dados aos sujeitos considerados diferentes. Para mim, esse é o maior
diamante da cultura catalã, saber acolher as pessoas com deficiência e outros
grupos tidos como minoritários.
Sei que um pouco disso se deve a questões históricas maiores
e mais amplas, como a eterna sensação de opressão e até de discriminação que
sente o povo catalão com relação à Espanha. Talvez o fato dessa sociedade viver
a diferença desde a muito tempo, faz com que uma mentalidade de respeito e
contemplação do direito à diferença seja mais fértil.
Contudo, é preciso dizer que muitos grupos que se sentem
oprimidos e discriminados, usam a exclusão e a discriminação de outrem como
arma para sua autoafirmação. O que a meu ver é uma atitude pouco inteligente, é
como tentar diminuir a violência sendo violento. Eu prefiro combater a
ignorância com conhecimento, a discriminação, com acolhimento. E, pelo que
notei, a maioria do povo catalão também age assim..
Há poucos pisos táteis, e talvez nem precise, pois as ruas
são bem conservadas e sem obstáculos como buracos ou orelhões. As indicações
dos nomes das ruas tem letras muito pequenas e isso é uma dificuldade. Mas, a
imensa maioria das pessoas tem condições de ter telefones modernos e com GPS,
logo, os cegos e pessoas com baixa visão usam a tecnologia para ultrapassar
essa dificuldade. Há sistemas de financiamento muito melhores do que no Brasil
para que esses sujeitos adquiram produtos tecnológicos com acessibilidade.
Para alguém com baixa visão como eu, as coisas são bem
melhores, pois além do auxílio tecnológico, as sinalizações no metrô e nos
ônibus têm letras grandes e com excelentes contrastes. Assim, consigo me
locomover sozinho para muitos lugares.
Quem não tem deficiência talvez não entenda a obsessão que
muitos de nós têm por conquistarmos nossa independência e autonomia tanto
quanto for possível. O simples fato de sair sozinho de um ponto a outro sem
precisar de ajudas mais intensas é uma sensação de liberdade que não se pode
descrever em palavras.
Quando temos autonomia, mais do que questões práticas, nos
sentimos como pessoas por inteiro, capazes de agir e de existir por si mesmas.
A liberdade é c condição de felicidade para os seres humanos, e para nós ainda
mais, já que representa a transposição de obstáculos que nos inferiorizam.
Poder ir e vir em segurança é como abrir a gaiola de um pássaro lindo, mas que
está preso. Há algo mais emocionante do que ver um blackbird aprendendo a voar?
Outro fato que me chama a atenção, é que em Barcelona as
pessoas com deficiência são tratadas como “pessoas comuns”. Quero dizer com
isso, que em Barcelona as pessoas não me olham com piedade ou desprezo, mas
como uma pessoa em igualdade de condições. Muito se fala da antipatia catalã,
mas eu não a encontrei muitas vezes.
No Brasil, todos os dias percebia as pessoas olhando para
mim com um ar de piedade ou comiseração, ou dos olhares que desviavam de mim
por puro desprezo, medo ou desejo de que eu estivesse longe, para afastar a “imperfeição”.
Aqui, não somos considerados “defeituosos”, mas, diferentes.
Em minha terra natal, não há uma vez que eu saia na rua sem
ter que responder a perguntas sobre o meu “problema”, minha “doença” ou se há “cura”
para ela. Ou seja, as pessoas se intrometem nas nossas vidas sem sequer nos
conhecer bem, fazendo perguntas inconvenientes, muitas fruto da ignorância,
outras por conta da rasa curiosidade e desejo de que todos sejam iguais, sem
pensar que a diferença é muito mais interessante.
Uns querem nos curar a todo custo, outros apresentam
explicações religiosas e transcendentais, usando as doutrinas e seus
fundamentalismos para nos chamar de pecadores ou fruto da desgraça humana.
Obvio que ter uma deficiência não é confortável, mas também não me sinto o
responsável ou exemplo de castigo do pecado da humanidade.
Bem diferente disso, em Barcelona não há patrulhamento
religioso ou intromissão na vida alheia. Logo, em mais de quatro meses que
estou aqui, NENHUMA VEZ me pararam para fazer perguntas ou observações como as
que referii acima. Sou visto como uma pessoa da mesma “classe”, que tem a
deficiência como uma das minhas características. Segundo me contaram alguns
conhecidos, eles entendem que a cegueira ou a baixa visão não significam um problema
que mereça importância, pois o que vale é a pessoa que se é.
É indescritível viver em uma sociedade em que eu não sou
apenas alguém com “olhos que não enxergam”, e sim como uma PESSOA. Ou seja, sou
mais do que a deficiência que tenho. Meus erros e meus acertos, meus defeitos e
minhas virtudes, são consequência do que sou, do que faço e do que cultivo, e
não “culpa” de minha baixa visão.
No Brasil, as posições estereotipadas me fazem sentir tão
preso quanto não poder sair de casa sem ter problemas de acessibilidade. São cárceres
arquitetônicos e atitudinais dos quais não sinto nenhuma falta. Espero que um
dia possamos nos mirar nesse exemplo, que derrubaram as barreiras e construíram
pontes para a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade, sem que percam
seu direito de ser diferentes.
Assim, autonomia e respeito à diferença das pessoas com
deficiência são a maior riqueza de Barcelona, muito mais grandiosa do que
qualquer monumento, muito mais valiosa do que qualquer patrimônio que há na
cidade. Viver numa sociedade assim me
faz ver que aquilo que sempre almejo é possível, que não é só uma ilusão. Não
há supervalorização ou inferiorização. Eis a maior liberdade que alguém pode
ter, tenho o direito de ser eu mesmo.
Que bom que estás tendo a oportunidade, no cotidiano, de viver em um lugar tão mais avançado do que o que temos aqui. Que as boas práticas dessa cidade maravilhosa atravessem as nossas. Liiindo texto, eu adooooooooooooooooooro o que tu escreve! Bjão
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