Muito triste com a partida do MAQ para outro plano. O Marco Antônio de Queiroz (ou MAQ, como todo mundo conhecia) colocou sua vida e sua obra a serviço da acessibilidade e da luta pelos direitos das pessoas com deficiência visual. Fez tudo isso do seu jeito, nunca convencional, mas sempre encantadoramente cativante.
MAQ criou o site Bengala Legal e lutou a vida toda para que a internet fosse acessível para pessoas cegas e com baixa visão. Se existem sites acessíveis hoje no Brasil, o maior responsável é ele.
Uma pessoa que faz - sim, porque ele continuará entre nós - a diferença muito mais pelos seus atos do que pelos discursos.
Minha forma de homenagem é deixar que ele mesmo conte um pouco da sua vida, de um jeito que só o MAQ sabia contar. Em Abril de 2013, ele concedeu uma entrevista ao blog Outros Olhares, da querida amiga Lucia Maria, e que publico abaixo na integra.
Querido MAQ, fica com Deus!!!!
Outro Olhar - Entrevista com Marco Antônio de Queiroz, o AQ
Lucia Maria, Março de 2013
“Se não amasse tanto a vida, já não estaria vivo”,
ele diz, rindo. Ou: “O cego é um inculto visual”. Passional e de
opiniões fortes, Marco Antonio de Queiroz, mais conhecido como MAQ, é um
grande incentivador da acessibilidade. Aos 56 anos e cego desde os 21, é
criador do site Bengala Legal, um dos maiores portais brasileiros sobre
deficiências, consultor em acessibilidade na internet e autor do livro
Sopro no Corpo: Vive-se de Sonhos. Aposentado desde 2003 como
programador de computadores do SERPRO (Serviço Federal de Processamento
de Dados), é casado com Sônia, pai de Tadzo, de 24 anos, e flamenguista
fanático. Nem os graves problemas de saúde afetaram o bom humor e o riso
fácil desse carioca que, franco, extrovertido e de fala mansa,
conversou com Outros Olhares, inaugurando no blog a seção Outro Olhar,
que pretende trazer a você convidados que, como o MAQ, tenham muita
coisa bacana a dizer.
CEGUEIRA
Perdi a visão por causa da diabete,
que tenho desde os três anos de idade. Quando tinha 21, cheguei em casa
na madrugada de sexta para sábado do Carnaval de 1978, guardei o carro
na garagem e fui dormir. Acordei cego. Mas nunca tive o que chamam de
“morte do cara que enxergou e nascimento do cara que não enxerga”. Não
me senti morrendo, me senti em transformação e tendo de aprender a ser
cego - aliás, continuo aprendendo (risos). Tenho um amigo que escala
montanhas, é um cego sem os limites do cego. Comprou uma casa, orientou
sozinho toda a reforma e fez uma pousada. A cegueira restringe seu
mundo, sem dúvida nenhuma, mas o quanto restringe vai depender da
permissão que você der a essa restrição. Ao longo da vida, fui e
continuo sendo muito mais restringido pela diabete do que pela cegueira.
INCLUSÃO
Fui fazer um curso de processamento
de dados no Instituto Benjamin Constant, aqui no Rio de Janeiro, em
1981 ( *O Instituto foi fundado por D. Pedro II em 1854 com o nome de
Imperial Instituto dos Meninos Cegos). Eu era o único não interno e o
único que nunca havia sido aluno. Os colegas me diziam: “Que bom, você
está no mundo lá fora”! Isso foi muito marcante para mim. Eram mesmo
dois mundos e continua sendo assim principalmente para pessoas com
deficiência intelectual, que são formadas para o isolamento, são
ensinadas a ser deficientes. Já para cadeirantes não existem escolas
especiais, eles estão espalhados pelo mundo e por isso são mais
lutadores. Não é à toa que o símbolo internacional das pessoas com
deficiência é um cadeirante. Há alguns anos eu defendi a inclusão na
lista de discussão na internet de ex-alunos do Benjamin Constant,
enquanto o discurso ali era pela educação especial, isso em discussões
de alto nível, com pessoas inteligentes e com a excelente formação dada
pelo Instituto. Fiquei pouco à vontade para continuar e acabei saindo da
lista, mas voltei há umas três semanas.
GRATUIDADE E ACESSIBILIDADE
Quem é a favor da gratuidade é
inimigo dos cegos. Gratuidade em produtos e serviços é a não inserção da
pessoa com deficiência na economia do país e se a defendem têm de lutar
por um movimento que não seja exclusivo de quem tem deficiência e sim
de qualquer pessoa sem condições financeiras. Cego tem de ter
acessibilidade.
AUDIODESCRIÇÃO
Comecei a me envolver com
audiodescrição em 2007, como jurado do “Assim Vivemos”, festival
internacional de filmes sobre deficiências. Fui interlocutor de um chat
para discussões sobre o festival, que aconteciam logo após a exibição de
um dos filmes na TV Brasil, uma vez por semana. Também já fiz revisão
de filmes e de descrições de imagens estáticas em livros. A
audiodescrição é o recurso mais necessário e mais completo que existe
para a pessoa com deficiência visual porque dá olho ao cego. Ainda falta
muito mas está crescendo, especialmente a malfeita (risos). A falta de
interesse e de luta dos próprios cegos pelo recurso é uma das maiores
dificuldades para a implementação de uma audiodescrição de qualidade no
país.
CULTURA
O cego é um inculto visual. A
cultura do cego é a falta de cultura. Não tem repertório cultural de
teatro, cinema ou televisão, tem apenas o do rádio e está acostumado a
isso. Outro dia, eu estava assistindo sozinho a um filme na TV de
madrugada e fiquei sem saber o final, não entendi nada. O pior é que
também não sei qual o título porque não é falado, só aparece escrito na
tela. É frustrante mesmo, o cego se decepciona pela não compreensão,
perde o interesse e simplesmente desiste, não luta pelo direito de
acesso a produtos audiovisuais. Mudar isso, implementar e ampliar o
visual na vida do cego encontra até resistência. Ele procura saber
apenas o mínimo necessário para exercer suas atividades cotidianas. Se
vai à farmácia, por exemplo, só sabe entrar e ir até o balcão, não dá
importância ao que há em volta.
HEROÍSMO
Nenhuma pessoa com deficiência é
heroína, como muita gente diz. Não há heroísmo algum nas milhares de
histórias de superação de limites pessoais de quem é cego. Se me jogo na
calçada para escapar de um atropelamento no meio da rua, não sou um
herói, sou um sobrevivente e fiz isso por mim mesmo. Se impeço que uma
velhinha seja atropelada, aí, sim, sou um herói. Heroísmo é fazer pelo
outro.
SAÚDE
Por causa da diabete, já fiz dois
transplantes: um de rim e outro de pâncreas. Tive uma diverticulite e
tirei 25 centímetros do intestino. Quando entrei no hospital para essa
operação, saí com uma pancreatite aguda que me rendeu um mês de
internação no CTI. Ainda tive um vírus no cérebro que se espalhou pelo
corpo e paralisou algumas funções. Perdi um pouco da memória e por isso
parei de dar palestras. Outro dia não conseguia lembrar do nome do lugar
em que estava e o nome era: posto de gasolina (risos)! Aplico insulina
três vezes ao dia e meço a glicemia três vezes por dia também, isso
quando está controlada. E tomo imunossupressores, remédios fortíssimos,
que diminuem as defesas naturais do organismo para que não ataquem os
órgãos transplantados, que são corpos estranhos. As defesas diminuem e,
com isso, aumenta minha sensibilidade a vírus, bactérias e fungos, por
isso saio muito pouco. Se vou a um banheiro de aeroporto é certeza de
pegar uma infecção. Aí, algumas vezes, preciso ficar internado no
hospital durante catorze dias tomando antibióticos. Fiquei doido para
participar do Segundo Encontro Nacional de Audiodescrição, no final do
ano passado em Juiz de Fora, Minas Gerais. Estava tudo certo para ir,
tinha acompanhante e tudo, mas passei mal e fiquei inseguro de viajar.
Isso é o que me “torra” de verdade, as limitações impostas pela minha
saúde. A cegueira para mim não é nada, são cócegas no pé. Se não amasse
tanto a vida, já não estaria vivo (risos).
RELIGIÃO
Sou ateu. Mas estudei em colégio de
padres e já passei pelo catolicismo, pela doutrina espírita e pela
filosofia da Ordem Rosacruz. Já estava em uma busca espiritual antes de
perder a visão, que só foi intensificada quando fiquei cego. Fico até
triste de não acreditar em Deus e de não seguir uma religião (risos),
porque seria um bom caminho para ter consolo e esperança. Ainda leio
livros que tratam de religiões porque gosto da paixão que vejo nos
outros.
ROTINA
Gosto dos amigos, livros e nada
mais (risos)… Uso o computador principalmente para ler livros. Li
recentemente dois de que gostei muito: A Cicatriz de David, romance
sobre uma família marcada pelo conflito entre palestinos e israelenses, e
A Culpa é das Estrelas, sobre o amor entre dois adolescentes com
câncer, em uma história sem pieguice. Televisão só assisto mesmo porque
sou louco por futebol! Acabo assistindo muito mais TV quando estou
internado e, infelizmente, com quase nada de audiodescrição.
MAQ
Sou um cara apaixonado, é a paixão que me move, não consigo evitar e é somente com paixão que eu posso viver.
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