segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O dia em que eu venci a morte, e de goleada



Apenas pessoas próximas sabem dessa história que tenho a revelar. Não que eu tenha algum problema com ela, pois apesar de ser a vítima, sou de todos os envolvidos, o que sabe melhor lidar com ela. A vontade de contar isso talvez venha do fato de estar morando em Barcelona, e ser a capital europeia com o maior número de motos. Isso me faz lembrar diariamente dos acontecimentos que irei compartilhar.
Era uma segunda-feira, dia 24 de Abril de 2000. Uns dois dias antes, tive uma decepção com um amigo e não estava lá muito legal. Mas era um dia depois da Páscoa e os chocolates me ajudavam a superar o fato.  Também era meu primeiro semestre na faculdade de História, e isso me deixava muito motivado e feliz por frequentar um curso que eu gostava tanto.
Como sempre, fui para a aula caminhando, já que a faculdade ficava perto de onde eu morava e eu sempre gostei de caminhar e ir refletindo sobre a vida. Não tenho muitas lembranças daquele dia, apenas sei de muitas coisas pelo que me contaram depois. Conforme me fora dito, tínhamos aula de Sociologia I, e não sei por qual motivo fomos liberados da aula mais cedo, por volta das 16 horas, conforme os colegas me contaram.
Então, fui para casa a pé como fazia todos os dias desde que começaram as aulas. Como de costume, esperei o sinal abrir para os pedestres e atravessei a rua (dessa parte eu tenho pequenos fragmentos de recordações). Infelizmente, um irresponsável de um motoqueiro resolveu ir mais rápido do que deveria e ultrapassar o sinal vermelho, o resultado é que o sujeito me acertou em cheio.
Como eu já estava quase do outro lado da rua e a batida me fez voar para frente, por cerca de 30 centímetros não bati a cabeça no meio-fio da calçada, e provavelmente seria meu fim. Com o impacto da batida eu desmaiei, mas segundo contaram testemunhas eu tive a sorte ou sei lá o que de colocar a mão na frente do rosto na hora de cair, e a batida na cabeça foi amortecida.
Tudo está documentado em algum prontuário policial ou da empresa de transito - perdido em um arquivo. Dizem que eu acordei alguns instantes, o suficiente para dar meu endereço ao policial que fazia a ocorrência. Desse modo puderam ir até minha casa avisar o que tinha acontecido.
Apenas o meu irmão que na época tinha 13 anos estava em casa, e o telefone estava estragado. Além de ficar assustado, ele teve que pensar rápido e ir até a casa de minha avó, onde havia um telefone que funcionava. Assim, pela primeira e única vez meu maninho andou em um camburão da polícia. Na mesma hora, avisaram o meu pai que estava trabalhando e foi corendo para o pronto socorro para onde eu seria levado.
Nesse meio tempo eu acordei. Lembro que recobrei os sentidos e senti que precisava cuspir algo, que entre muito sangue, percebi que havia todos os cinco dentes da parte frontal da boca. Isso me deixou um tanto assustado, mais ainda do que eu estava. Sentia muitas dores nas mãos e no rosto. Mesmo assim, ainda perguntei aos enfermeiros para onde eu estava indo e se tinham avisado meus pais.
No meio do caminho, escutei uma batida muito forte e em ato continuo me levantei mesmo com aquele colete cervical pesadíssimo. Ainda não tinha visto o que aconteceu, mas olhei para trás e vi que algo pontiagudo havia cravado a maca bem onde era para estar o meu pescoço. A única coisa que a enfermeira conseguiu dizer Foi: ”teu anjo da guarda te salvou pela segunda vez hoje guri”. Fiquei tão apavorado que emudeci – o que para um tagarela como eu é algo quase impensável.
Segundos depois, soube que uma moto tinha batido em alta velocidade na ambulância em que eu estava, e por isso alguns aparelhos quebraram e voaram lá dentro. Infelizmente, o motociclista havia ficado muito ferido na batida, e como sabemos não há tantas ambulâncias assim na cidade, imaginem a mais de uma década.
Isso gerou um fato que seria cômico se não fosse trágico. A enfermeira que estava me atendendo correu para ver como estava o motoqueiro atingido e uns cinco minutos depois voltou para me dizer: “tens que tomar uma decisão, eu não posso te obrigar a nada, mas, o motoqueiro que bateu na gente está muito mal, e precisa ser atendido logo, queríamos saber se aceitas sair da ambulância e esperar outra para que o levemos no teu lugar?” Eu não tive dúvidas em aceitar.
Por isso, fiquei no meio-fio da calçada durante um tempo conversando com a atendente e com muita dor no rosto e nos braços com as roupas esfarrapadas. Lembro que sentia como se meu rosto tivesse o dobro do tamanho normal e sangrava bastante pelos ferimentos internos na boca o que me deixava com uma sensação ainda mais desagradável. A adrenalina ia baixando e a dor aumentando, e muito.
Lá pelas tantas, chegou outra ambulância e fui para o hospital receber tratamento adequado..Chegando lá, eu encontrei o meu pai me esperando em certo desespero pois chegara primeiro do que eu. Teve muito alívio ao me ver, mas não maior do que o meu.
Foi engraçado que ele tentava falar comigo tentando me consolar e fingir que eu não estava com o rosto todo arrebentado. E, eu tentava tranquilizar ele dizendo que estava tudo bem, mesmo sentido dores terríveis. Sim, hoje eu consigo achar graça em tudo isso.
Depois de terem me levado para fazer uma peregrinação por quase todas as salas de exames do hospital, fui levado até a emergência dos politraumatizados para fazer as suturas necessárias. Fiquei sabendo iria passar a noite no hospital em observação.
Havia apenas uma vaga naquele momento, e fui colocado como o “paciente 10”. Enquanto os médicos tricotavam a minha boca ouvia algumas conversas dos funcionários no entorno, primeiro porque isso me fazia sentir menos dor, e segundo porque meu ouvido desenvolvido me ajuda nisso.
Eis que ouvi uma mulher comentando que o “09” era de uma gangue e tinha ficado ferido em uma briga de traficantes, e que já tinham chamado reforço da polícia porque tinham medo que seus companheiros fossem resgatá-lo ou que os adversários terminarem o serviço.
Fiquei pensando que o sujeito estava imediatamente ao meu lado, e esse pessoal não quer nem saber quem está por perto e não tem nada a ver com isso. Dai sim, me bateu um baita pavor. Eu conversei com a enfermeira e disse que não ficaria ali mais um minuto sequer. Depois de muito eu incomodar e de provar que tinha auxiliares de enfermagem na família que cuidariam de mim, consegui liberação.  
Duas horas depois e com a recomendação expressa de não dormir e de no primeiro sintoma correr de volta pra lá, eu sairia do hospital. Nesse momento eu já estava com a boca e o queixo todo suturado em um total de 13 pontos – e um inchaço tão grande que o lábio superior tocava a ponta do meu nariz-, com a mão esquerda enfaixada e muitas escoriações no rosto e nos braços e pernas.
Com certa dificuldade, coloquei a roupa e fui saindo pela porta. Quando a abri, para minha surpresa e em ato contínuo, o policial militar que vigiava a entrada sacou uma arma e apontou para a minha cara. A única coisa que eu disse foi: “cara eu não vou fazer nada, estou aqui todo fodido e ainda com uma arma na cara, que eu posso fazer contra ti?” Como eu falei meio sorrindo, o tal sujeito pediu desculpas meio constrangido e sorriu também.
Mais uma porta, e encontrei com meu pai. Eu nunca tinha ficado tão feliz em vê-lo e saber que eu voltaria para casa só com uma história para contar, além de ter que tratar durante três meses os meus dentes e refazê-los. Naquela noite nem que eu quisesse eu conseguiria dormir, pois até chegar em casa eu estava em estado de alerta e não tinha me dado conta de tudo que acontecera.
Assim que cheguei em casa e vi a alegria da minha família, me dei conta de tudo, acho que chorei tanto que fiquei um ano sem lágrimas. Foi uma época difícil, pois eu fiquei com medo de sair na rua. Quase um ano depois decidi que era hora de acabar com aquilo e sai sozinho, fiz o mesmo trajeto, ida e volta, nada me aconteceu, e assim, voltei a ir a pé para a faculdade.
Hoje eu conto essa história como algo engraçado que me aconteceu, pois eu sempre faço das coisas ruins um motivo para rir. Porém, lembro que eu fiquei assustado com a possibilidade de morrer tão cedo. Por outro lado, tive felicidade de ser visitado e receber telefonema de muita gente, e como dias antes eu me sentia o último dos seres humanos, tudo aquilo me deu animo para continuar. Eu percebi que muita gente me queria bem.
Portanto, pude notar o quão efemera e boa é a vida. Procuro fazer de cada dia o mais importante e me cuidar sabendo que muita gente sentiria minha falta. Acho que esse episódio foi muito bom na minha trajetória, já que eu de fato nasci de novo, muito melhor do que antes.
As marcas que tenho desse episódio são mais do que a cicatriz que tenho no queixo, são da grandiosidade e da fragilidade da vida. Por isso eu agradeço que essa história tenha acontecido comigo, pois fez de mim um sujeito melhor e um dos poucos a vencer a morte três vezes no mesmo dia.

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