sábado, 20 de setembro de 2014

Os olhares que não vejo



Há algumas coisas que me incomodam um pouco na deficiência e não tenho nenhum problema em dizer isso, afinal, até as coisas mais belas tem suas imperfeições. Uma delas, o fato de eu dificilmente conseguir ver os olhares das pessoas, saber a expressão facial e as nuances do olhar de cada um em diferentes situações.
Para quem enxerga bem, olhar nos olhos das pessoas é uma referência para entender muitas das coisas que a voz não consegue demonstrar – ao menos, quem não treina o ouvido acha isso. Talvez por isso, os olhos sejam muito tematizados em canções e poesias quando se busca demonstrar alegria ou tristeza, esperança ou incomodo, volúpia ou desprezo.
Para mim, tudo isso é um pouco inatingível, a não ser que eu conheça muito bem a pessoa e consiga ter contato facial muito próximo para enxergar essas coisas. Mesmo assim, ainda acho um pouco difícil compreender o que é um olhar de medo, de paixão, de raiva ou de dissimulação. Sempre quis saber como eram os “olhos oblíquos e de ressaca”.
Não só os olhares, mas as expressões faciais são algo como um filme borrado, já que dificilmente eu consigo distinguir um rosto preocupado, abatido, eufórico ou feliz. Já é complicado guardar as feições de alguém, imaginem quando isso ganha outras variáveis imperceptíveis para quem não enxerga bem, como uma testa suavemente franzida, isso eu nunca conseguirei diferenciar.
Tais situações podem causar muitos embaraços, porque jamais saberei quando uma pessoa faz rosto de rejeição ou quando tenta me dizer algo com os olhos. Raramente sei quando estou agradando ou não, pois não tenho contato visual com meu interlocutor, o que me gera grande ansiedade às vezes.
Geralmente quando convivo com alguém que ainda não conheço muito bem, e não me apropriei dos tons de voz delas, nunca sei se estou sendo inconveniente ou sendo legal, fica bem complicado de saber. Logo me retraio, e busco um comportamento mais introspectivo, confundido por muitos como timidez, por outros como sisudez ou ainda algum tipo de sensação de inferioridade, porque eu sempre sinto que posso estar incomodando, afinal, eu não tenho noção do que seus rostos dizem.
Ainda não sei exatamente como resolver essa questão ou como lidar com ela, pois, nem tudo conseguimos solucionar e o importante é saber minimizar as mazelas cotidianas. Uma solução que tenho adotado ultimamente, é tentar descobrir as expressões faciais com a visão que possuo, nesse caso, com as minhas mãos e com a ponta dos dedos.
Já tive a chance de tatear rostos algumas vezes, explorar diferentes formatos de faces, uns mais redondos, outros mais retos, por exemplo. Isso se aplica a todos os detalhes faciais que antes eram muito desconhecidos para mim, o que dificultava a construção da imagem mental de como seria o rosto de determinada pessoa mesmo que alguém me descreva as características básicas.
É muito interessante perceber, que por mais que muitos de nós sejamos parecidos, cada um tem sua particularidade e não há - nem mesmo entre os gêmeos – um rosto igual ao outro. Basta ter habilidades táteis para ver isso. É uma pena que eu não possa fazer isso mais vezes, pois vivemos em uma sociedade onde o toque adquire cada vez mais contornos de pecado e de algo nocivo, embora isso esteja na cabeça de quem o pensa.
No que me diz respeito, tocar um rosto barbudo ou de uma mulher dá no mesmo, porque eu estarei sempre aprendendo e enriquecendo meu “banco de imagens mentais” do mesmo jeito. Mas enquanto esse dia ainda não chega tento mesmo é descobrir pela audição o que meus olhos já não podem ver.
Quando alguém me diz ”olhe nos meus olhos e diga...”, sinto um arrepio passando pelo meu corpo, porque eu nunca conseguirei fazer o que a pessoa me pede, pois eu até posso ficar olhando para ela diretamente, mas não sei onde estão seus olhos, não tenho como retribuir uma fitada direta de olhares. Nem sequer, entendo o que os olhos dizem, pois eu não os vejo para promulgar alguma certeza.
Posso até estar realmente implicado na conversa, demonstrando com meus olhos o que a pessoa deseja ou não saber, mas eu nunca tenho a recíproca, e isso me causa bastante frustração, principalmente, quando se trata de um papo sério ou com o qual eu realmente me importe. Para as pessoas cegas talvez isso não seja um problema, mas para quem tem baixa visão, muitas vezes isso pode ser um tanto complexo.
No meu caso as coisas ficam ainda um pouquinho piores, pois a especificidade de minha deficiência faz com que meus olhos estejam sempre se movimentando, muitas vezes de maneira involuntária. E quando mais tenso eu fico, mais isso se intensifica. Talvez por essa característica eu seja ansioso e queira estar sempre me mexendo de algum jeito, porque meus olhos também são assim.
Nem sei se até mesmo os meus amigos já notaram isso, mas como meus olhinhos se mexem sem parar, certas ocasiões até sem querer, eu desvio o olhar ou fico mirando outra coisa que não é o rosto da pessoa que fala comigo. Muitas ocasiões, penso que as pessoas não percebem que eu direciono os olhos muito mais de maneira involuntária do que por uma questão intencional.
Logo, se eu desviar o olhar enquanto falo com você, isso não significa absolutamente nada, e tenha certeza que eu estarei prestando mais atenção ao que diz do que na sua expressão facial ou algum outro detalhe que meus olhos rebeldes venham a focar. Só consigo ficar com olhos fixos por alguns segundos, e mesmo assim, acreditem, é um esforço físico e de concentração que me cansa mais do que uma hora de exercícios na academia.
Seja como for, sempre tive curiosidade para entender como são as diferentes formas de olhar. Queria saber por quais razões os olhos fascinam tanto as pessoas e como se consegue expressar com os olhos os sentimentos que nos passam. Queria compreender os significados concretos das expressões faciais e das diferenças nos rostos das pessoas. E não ter isso, me faz sentir falta da visão completa, o que nunca tive. Mas não se preocupem, essa vontade passa bem rápido.
Portanto, compartilho algo que me faz falta, e que provavelmente muitas pessoas com deficiência visual sentem. Mais ainda, serve como um esclarecimento para muitos videntes que não compreendem as dificuldades que não ver os olhares e as expressões dos outros nos causam. Mas, prefiro os olhos que não enxergam a aqueles que mesmo enxergando se negam a ver.

Um comentário:

  1. Felipe querido, imagino sua curiosidade quanto "as caras" dos videntes, mas será que a respiração, os suspiros, os silêncios, os movimentos e principalmente a sua sensação háptica em relação a quem está falando não te dá uma mãozinha nisso? E já que estamos falando em "olhares", que tal pensar nos momentos que os videntes fecham os olhos... nos beijos apaixonados, nas conquistas realizadas, nos abraços apertados, na respiração profunda para pensar, nas gargalhadas gostosas, para sentir o cheiro da natureza ou de alguém, nos choros de alegria ou de dor, nos momentos de fé e de introspecção... enfim, nos momentos especiais fechamos os olhos... por que? Um abraço carinhoso! Lilian Merege Biglia

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