Na noite do dia 26 de janeiro do ano passado eu e a Patrícia
saímos para jantar com amigos. Nos divertimos muito, tomamos umas cervejas, em
ótima companhia e ouvindo boa música. Um pouco antes de um novo dia começar
chegamos em casa, e para variar, eu tive insônia. Mas, naquela noite foi
diferente, eu estava com uma angústia sem explicação. Não dormi naquela noite.
Fiquei ouvindo rádio para ver se o sono chegava, até que a
programação foi interrompida para falar de um incêndio em Santa Maria que teria
matado uma pessoa. Meia hora depois, outro corte, dessa vez em definitivo, para
falar diretamente do local. E a partir dai, começou o domingo mais triste do
Rio Grande do Sul.
Quanto mais o tempo e as notícias se seguiam o quadro ia
ficando mais aterrorizante. Uma boate superlotada pegara fogo e o cenário era o
pior possível. A cada minuto aumentava o número de mortos e feridos. Sabendo
que a Patrícia tem familiares na cidade, fiquei ainda mais apreensivo.
A boate Kiss, pela ganância e mau caráter de seus donos
estava superlotada e recheada de irregularidades como sempre, e o que deveria
ser uma noite de festa, virou um pesadelo real. Como pode isso, jovens até mais
novos do que eu, com uma larga trajetória de vida pela frente morrerem desse
modo tão abrupto?.
Aquele início de manhã do dia 27 de janeiro mudou a minha
vida. Enquanto a Patrícia dormia e eu ouvia a cobertura pelo rádio, o sol
nascia e me pegava pensando em meio ao silencio triste. O primeiro pensamento
que me veio foram as noites em que eu também participava de festas em locais
com lotação absurdamente ultrapassada.
Achava até legal aquela multidão se divertindo, a energia
sempre foi boa, mas a gente ignorava o perigo. Nunca entendi o motivo de meus
pais me esperarem acordados em cada uma dessas noites. Achava que eles deveriam
descansar e que aquilo era uma bobagem. Que tolo eu fui, aquilo era uma das
maiores demonstrações de amor que eles poderiam me dar, mas só então eu vi as
coisas por esse ângulo.
Consegui entender o que eles pensavam e o que sentiam toda
vez que me viam entrar em casa inteiro e pronto para outra. Muitas vezes a
gente desconsidera alguns gestos de amor, e demora muito para ter ideia do que
eles representam. Pelo menos eu tive tempo para descobrir isso, algo que
provavelmente muitos dos meus semelhantes que feneceram naquela noite não
tiveram.
Outro fato que me fez refletir, foi ao ouvir os relatos de
que muitos daqueles que morreram conseguiram sair daquele inferno, mas
retornaram para tentar salvar pessoas que nunca tinham conhecido. Muitos
pereceram assim, salvando muitas vidas em detrimento das suas, e isso é que ainda
me faz acreditar na humanidade.
O dia foi passando e Porto Alegre estava em um silêncio
incomum, e assim ficou durante todo o dia. Vi e ouvi as imagens do ginásio onde
estavam os corpos e centenas de celulares tocavam ao mesmo tempo, provavelmente
as famílias ligando para os jovens que já haviam nos deixado. Nem em meu último
dia de vida esquecerei dessa imagem de tamanho sofrimento.Do jeito mais desagradável possível, e pela primeira vez, eu
entendi exatamente o que é e o tamanho do amor de pais por seus filhos. Tudo
aquilo me causou medo e admiração.
Foram 242 pessoas mortas, mais de uma centena de feridos e
milhares de pessoas atingidas diretamente, que perderam filhos, irmãos, pais,
amigos ou alunos. Mas, o estado inteiro sofreu um golpe muito duro. A cidade
ficou calada, não fossem os helicópteros que subiam e desciam com no parque da
Redenção, com os feridos transferidos de Santa Maria.
Eu não conheci diretamente ninguém que foi atingido pela
tragédia, mas isso não é preciso para sentir uma dor sem tamanho, basta se
colocar no lugar daquelas pessoas. A sociedade gaúcha tão conhecida pelo
binarismo, nesse caso se uniu em um luto doido.
É inaceitável que tantas vidas promissoras tenham sido
ceifadas, foram tantos os sonhos destruídos naquela noite que fica impossível
dimensionar o que isso representa. Quando a imprensa divulga todos os números e
nomes daqueles que morreram, parece algo trágico, ainda mais se lembrarmos que
cada pessoa é um universo. Cada um dos mortos e feridos tem uma família, tem
amigos, tem uma história de vida que foi solapada. Não é possível sequer
imaginar quanta falta faz uma dessas pessoas para seus entes, imaginem se
falarmos de todas.
Infelizmente, os proprietários do local nunca pensaram na
segurança de seus clientes. Mais do que colocar a vida de seus clientes em
constante risco, no dia do ocorrido, muita gente morreu porque os seguranças ao
invés de abrir, fecharam as portas do local. Os políticos lavaram as mãos e não
fiscalizaram como deveriam. Descumpriram leis, fiscalizaram mal, foram
responsáveis pela morte de centenas de pessoas, e continuam soltos.
Se fossem seres humanos que merecessem alguma consideração,
teriam reconhecido o que fizeram e assumido sua culpa. Mas preferiram contratar
advogados com caráter parecido com os seus, e que fazem sempre questão de culpar
as próprias vítimas. O prefeito e seus amigos foram coniventes, e portanto, tão
responsáveis quanto os donos, mas a in-justiça os livrou, ainda.
Um ano depois, percebo que os legisladores tomaram atitudes
muito mais para aparecer na mídia do que por convicção. Nada foi feito de
concreto que não fosse para parecer que fizeram alguma coisa depois do que
aconteceu. Foi preciso morrer tanta gente para que os legisladores e a inerte
sociedade brasileira fizesse alguma coisa. Coisas que, infelizmente, estão se
dissipando com o tempo. Boates seguem irregulares, órgãos de fiscalização
continuam burocráticos e sem pessoal suficiente, e a população continua em
risco.
Acho que todos nós aprendemos com tudo que aconteceu, mas
cada dia que passa tudo volta a ser como
era antes. Depois da forte comoção popular o que ficou foi a lembrança, mas sem
que isso resultasse em benefícios duradouros e práticos.
A vida é tão valiosa e linda que as vezes eu acho que
deveria ser deveria ser eterna. Mas como não é, é preciso ter cuidado sempre,
já que há muita gente que amamos e que nos amam, para quem nossa ausência seria
uma catástrofe.
Nesse mundo acelerado em que a gente vive algumas coisas se
perderam, como as demonstrações de afeto e as declarações de amor pelo outro,
algo tão importante de ouvir, e principalmente, de dizer. Fatos como esse nos
provam que esses gestos são fundamentais, já que se demorarmos muito para fazer
isso, pode não haver tempo.
Dizer tudo que eu sinto sobre esse assunto seria impossível,
mas gostaria muito que as pessoas refletissem sobre as circunstâncias de tudo
que aconteceu para que não se repita. Acho que é um bom momento para nos darmos
conta que cada instante de vida é importante, que é preciso ter zelo e cuidado
consigo mesmo pelo amor que sentimos pelo outro. Amar com intensidade é
entender o amor daqueles que te querem bem.
Fica minha singela e sincera homenagem a todos aqueles que
se foram, aos feridos e demais atingidos por esse fato tão lamentável. Desejo
que tenham muita força e serenidade. Embora nada traga todas as radiantes vidas
de volta, espero que a justiça seja feita e que cada um de nós aprenda com tudo
que aconteceu. Façamos com que a morte de tantos jovens não tenham sido em vão.
Parecem clichês, mas é o que eu sinto.
Enfim, nossas vidas ficarão marcadas para sempre por aquele
domingo tão triste e que nunca deveria ter existido. Desejo que nunca mais se
repita a estupidez que fez com que isso
ocorresse, que a voracidade empresarial pelo lucro dê lugar ao zelo e
preocupação com o outro. Espero que fique o sentimento de solidariedade,
empatia e amor pelo próximo, a única coisa boa que restou disso tudo.
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