sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Foi a pátria quem os pariu


O assunto do momento são os tais “rolezinho” e eu não poderia me furtar de dar minhas opiniões sobre o que vem ocorrendo, ainda que eu esteja um pouco distante do Brasil. Mas, embora talvez nem seja tanta gente que se importe com o que eu diga, direi mesmo assim. Está apavorado com esses jovens fazendo rolezinhos? Pois é, eles são filhos da pátria – e, portanto, seus.
Desde que o Brasil foi ocupado pelos europeus vem sendo criado um fosso cada vez mais profundo entre a parcela da população que se considera dona do país e a “vassalagem”. Contemporaneamente, se convencionou chamar esse primeiro grupo de “classe média”, e o segundo de “pobres”, mas o abismo continua crescendo. E quando se pensa que a sociedade brasileira evolui, ela se mostra mais conservadora.
Essa tal classe média – a mesma que apoiou o golpe militar e agora posa de (pseudo)democrata – tem aumentado nos últimos anos. Inclusive pessoas que antes eram “pobres” agora fazem parte dela, e encamparam seu pensamento retrogrado e preconceituoso, o que é uma pena. Já que muitos sofreram discriminação por serem pobres, e agora que tem condição financeira melhor, fazem o mesmo com outrem.
Sim, estou generalizando porque estamos falando de comportamentos coletivos e não individuais e se estás incomodado com o que digo, continue lendo, pois vai piorar.
Durante décadas, quiça, séculos, aqueles que dizem comandar o país viraram as costas para a população pobre, não lhes dão educação, saúde, emprego, enfim, nenhuma condição suficientemente adequada que não seja na base do assistencialismo ou das políticas populistas. Verdade que na última década muita gente saiu da miséria, mas não é menos verdade que ainda continua dependente dela.
Essa “emergência da classe pobre” tem dado arrepios na tal classe média que ainda não sabe bem como lidar com essa “gentinha”. Mas, é a mesma coisa que deixar a panela de pressão no fogo ad eternun, um dia ela explode.
A juventude brasileira não tem muitas opções de vida como se propaga por ai. A educação é a saúde são precárias e embora o acesso seja universal, a qualidade é pífia. Fala-se no tal pleno emprego, mas a grande maioria, com salários bem pequenos, e sem tantas perspectivas assim. E a desigualdade social foi maquiada e recauchutada, mas continua colossal.
Assim, esses jovens não têm alternativas de lazer, já que não podem ir ao cinema, ao teatro ou outro ambiente cultural pelo alto custo desses produtos. Bibliotecas públicas são raríssimas, praças e parques são sujos e mal cuidados. Aonde a juventude irá se divertir?
Por outro lado, cada dia mais a tal classe média tenta se afastar dos “pobres” tentando estar o mais longe possível, entendendo até que o ideal é que eles não frequentem os mesmos espaços para não ter que conviver com os “maloqueiros”. Criam uma barreira não material, mas muito visível entre nós e eles. Quase um Apartheid velado - ou nem tanto, agora.
Um dia os jovens que a pátria da classe média pariu crescem, e agora que a “democracia” chegou, eles não têm mordaças e amarras que lhes façam calar. Como muita gente que se acha gosta da frase do Pequeno Príncipe, acho que aqui ela se encaixa bem: “cada um é responsável por aquilo que cultiva”, Ou, no populacho, “pariu a criança, agora que a embale”.
Os tais rolezinhos são exatamente isso, fruto do descaso secular com a juventude brasileira que agora talvez tenha tido as condições para dar um basta. Acho até que isso seja continuação dos protestos do ano passado. As manifestações de Julho foram empreendidas, via de regra, pela classe média também, e por isso, creio que teve certo glamour. Mas, quando a manifestação vem dos “favelados”, ai o nome é outro, bandidagem.
Isso que os jovens da periferia tem feito também é reivindicação de direitos só que sem o “charme” das manifestações anteriores. O que esse pessoal quer é ser visto, mostrar à sociedade brasileira que eles existem e que tem direito a ocupar os espaços públicos e privados tanto quanto qualquer outra pessoa que viva no “reino da fantasia” dos condomínios fechados.
Não quero dizer com isso que os crimes estejam legitimados. Quem cometer excessos deve ser responsabilizado por isso. Quem se aproveitar do ato para fazer algo fora da lei, que assim seja tratado.
Mas, qual a diferença entre um jovem que faz “arruaça” no shopping em um rolezinho e um “filho de papai” que briga em uma casa noturna? A diferença é a conta bancária. Qual a diferença dos “baderneiros” do rolezinho para os donos de Mercedes que estacionam em vagas para pessoas com deficiência ou dirigem bêbados? A diferença é que o primeiro recebe os rigores da lei e os últimos, as benevolências da lei.
As pessoas consideradas diferentes e inferiores sempre causam estranheza, medo e repulsa. Muita gente acha que os shoppings são oásis, quase uma bolha da classe média, e então, um grupo de jovens invade esse “cenário ideal” e põe por terra o sonho da classe média em viver em um mundinho sem pobres ou sem pessoas diferentes. Claro, isso causa revolta.
E, no caso dos centros comerciais de compras, não são apenas os jovens da periferia que não são bem-vindos, pois salvas honrosas exceções, pessoas com deficiência também não o são. Prova disso, a falta de acessibilidade nesses estabelecimentos.
Pior que não ter condições adequadas é ser seguido compulsivamente pelos seguranças, como se nós fôssemos um perigo. Sim, se você não sabe, as pessoas com deficiência como eu percebem e sabem que os seguranças as seguem por todos os cantos do shoppings, inclusive nos sanitários. Do que eles têm medo?
Com os integrantes dos rolezinhos o mesmo acontece, imaginem “aquela gentalha” toda fazendo baderna e perturbando a paz artificial da classe média. Pois ai que está o ponto, a diferença é perturbadora e assim deve ser sempre. Esses jovens encontraram um modo de reivindicar seus direitos de ocupação dos espaços materiais e sociais.
Arrumaram um jeito de se mostrarem, de expor aquilo que a tal classe média tenta varrer para baixo do tapete. Os rolezinhos não são nada mais do que o resultado de décadas de exclusão social e supressão dos direitos de educação e lazer dos jovens das favelas. Talvez, seja mais complexo do que isso, mas acho que aqui está o cerne da questão.
Assim, a favela desceu para o asfalto e essa classe média não sabe o que fazer com isso. Porém, foi ela mesma que gestou e criou essa juventude que agora repele. Esses jovens são todos filhos da pátria que os pariu, e se eles são mal educados, saibam que quem lhes educou – ou deixou de fazê-lo – foi essa mesma sociedade que agora os condena. Porque ao Inês de virarem as costas, a sociedade não lhes dá um abraço acolhedor? Eis uma grande oportunidade.

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