Dois fatos
me chamam a atenção quando faço alguns debates sobre os direitos das pessoas
com deficiência. A primeira, é que as pessoas ainda acham que só é preciso ter
acessibilidade em locais ou situações onde haja pessoas com deficiência, elas
esquecem que a acessibilidade deve ser UNIVERSAL conforme as convenções da ONU.
Em segundo
lugar, a afirmação: “tudo é um processo e
um dia muda” parece ser desconhecimento sobre as dificuldades infindáveis
que uma pessoa com deficiência passa cotidianamente. Claro, as pessoas dizem
isso porque nunca bateram com a cabeça em um telefone público, nunca tiveram
que ser carregadas no colo por falta de rampas ou algo do tipo, e ai sim fica
bem fácil pedir para que a gente espere só mais... um século quem sabe?
Quando vou
a cinemas, teatros, restaurantes, universidades ou outros locais e pergunto por
que não há rampas, pisos táteis, material com fontes ampliadas ou
audiodescrição, a resposta que mais me deixa nervoso é: “mas nunca uma pessoa com deficiência esteve aqui”. Isso significa
que primeiro é preciso aparecer o “problema” para depois se pensar na resolução?
Não faltam exemplos de que esse tipo de comportamento pode causar verdadeiras
tragédias
Quando ouço
isso me sinto sitiado dentro de minha própria cidade ou local de trabalho, pois
as pessoas acham que se eu tenho uma deficiência tenho que frequentar sempre os
mesmos lugares, usar sempre o mesmo lado da rua, usar sempre a mesma linha de
ônibus. Oras, se formos por essa lógica, fechem as bibliotecas já que quase
ninguém as frequenta, afinal, isso seria mais fácil de fazer do que refletir
sobre o incentivo a leitura.
Quando
alguém diz: “nunca pensei nisso antes”
me sinto como se eu fosse menos importante que a poeira que se acumula nos
lugares, pois de varrer o chão ninguém esquece. Sim, muitas vezes nos sentimos
escanteados, desprezados e ignorados por uma parcela considerável da sociedade.
Além disso, nos sentimos quase em liberdade condicional, pois não podemos ir a
todos os lugares, desfrutar das mesmas sensações que todos.
E, não se
enganem, isso não é uma consequência da deficiência, mas sim, da incapacidade
que a sociedade tem de contemplar as especificidades de pessoas consideradas
diferentes. Ou seja, o problema não são os olhos que não enxergam, mas a cabeça
que não pensou em colocar um piso tátil ou disponibilizar audiodescrição.
Outro argumento
“brilhante” é o de que há pouca demanda e por isso o “custo não compensa” Eu retruco essa afirmação perguntando, para
você, qual o preço de sua autonomia? Quanto vale uma emoção? Quanto vale uma
vida? O que essas perguntas têm a ver com as afirmações anteriores? TUDO!
Afinal, usar o argumento financeiro para não dispor de acessibilidade é o mais
poeirio – embora para muitos pareça consistente – que eu conheço.
Tratando-se
de instituições públicas, posso dizer que como pessoa com deficiência pago todos
os meus impostos em dia, todas as contribuições com o erário estão de acordo
com a legislação. Mas, e o serviço público, está de acordo com minhas necessidades?
Não. Nesses casos o dito popular se altera e eu “pago para me incomodar”, já
que financio o Estado, mas, na hora de ter o retorno encontro ruas
inacessíveis, prédios públicos, hospitais, parques e universidades em péssimas
condições de acessibilidade.
Porque uma
instituição paga uma grana polpuda para um convidado considerado “famoso” e
choraminga dizendo que fazer acessibilidade é caro? Qual a prioridade da
instituição? Sim, isso acontece constantemente, pois os gestores ainda acham
que quem presta serviços de acessibilidade o fazem “por amor”, como se eu fosse
ao supermercado e pudesse trocar dez notas de amor por dois quilos de arroz e
feijão.
Mas o pior
de tudo, ainda é achar que a acessibilidade para o que consideram ser poucas
pessoas não vale a pena o custo. Essas pessoas já pararam para pensar que a
autonomia e satisfação de uma pessoa não tem preço? Qualquer investimento feito
em acessibilidade vale e muito, não há valor que pague o respeito à diferença.
Por isso, eu acredito que chegará o dia em que a acessibilidade fará parte da
“cesta básica cultural” da sociedade.
Enquanto
esse dia não chega, vejo muita gente dizendo que nós reclamamos demais e que
não podemos querer tudo ao mesmo tempo, que a acessibilidade é um processo
longo e demorado que requer paciência. Eu concordo que historicamente fizemos
muitos avanços, que a inclusão parece mesmo ser um caminho sem volta e que
nossa vida é infinitamente melhor do que era há vinte anos. Perdoe-me quem se
conforma com isso, mas não costumo me contentar com migalhas.
Se
pensarmos historicamente, estamos indo rápido, mas se particularizarmos e nos
colocarmos no lugar de cada pessoa que sofre diariamente com a falta de
acessibilidade, que não consegue usufruir de museus, praças, edifícios,
escolas, shoppings e tantos outros lugares, será que você acharia que estamos
tão céleres assim? E se nos colocarmos na posição de quem vai ao cinema e não
consegue ter acesso ao filme, vai a uma instituição pública e é discriminado ou
se machuca por ser um local inacessível?
Nessas
situações, se colocar no lugar do outro e lembrar que junto com cada reclamação
e reivindicação há um alguém que clama por seus direitos, é fundamental nesse
processo. Mais que isso, as pessoas nunca se deram conta de quem para uma
pessoa que tenha uns 30 anos e viveu sempre sem acessibilidade, esperar mais
três décadas para que tudo mude é tempo demais.
Dizer que
tudo é um processo estando de fora dele é muito simplista. Isso porque, para
quem espera uma vida inteira por acessibilidade sem saber se um dia terá,
muitas vezes um ano já é tempo demais para esperar. Quantas coisas mais ela irá
perder? Quantos eventos mais ela não poderá ir? Quantos filmes ela não verá?
Quantos museus e exposições ela não conhecerá? Espero que as pessoas reflitam
que não estamos aqui lidando com mobiliários, mas com pessoas, que tem suas
necessidades e sentimentos.
Eis uma
dificuldade no nosso tempo, se colocar no lugar do outro e não ver as pessoas
como meros números, mas como sujeitos que sentem e que vivem o doce e o amargo,
que precisam ter suas especificidades atendidas não por estar na moda ou constar
na lei, mas por consciência de que cada um de nós deve lutar pelo pleno
bem-estar do próximo, não querendo mudá-lo, não querendo curá-lo, mas dar um
fraterno abraço e caminharmos juntos pelos ladrilhos cintilantes rumo à estrada
do sol.
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