sábado, 17 de agosto de 2013

E o Kikito vai para... AUDIODESCRIÇÃO!

Ontem, dia 15 de Agosto, mais um momento histórico para a audiodescrição brasileira, mais do que isso, eu diria que para todo o cinema nacional. Pelo segundo ano consecutivo um filme da mostra competitiva (esse ano a de filmes estrangeiros) teve audiodescrição no Festival de Cinema de Gramado. Esse ano, foi a exibição de "À oeste do fim do mundo", dirigido por Paulo Nascimento que contou com o recurso de audiodescrição, uma parceria da Accorde Filmes e Tagarellas Audiodescrição.
Nós da Tagarellas ficamos muito honrados em participar, desde a brilhante narração da Márcia Caspary, passando por revisão do roteiro da Mimi Aragón e Marcia Caspary e com a consultoria deste que escreve e da Mariana Baierle. Também ajudamos a levar dois microônibus ao evento, totalizando quase cinquenta pessoas que desde o festival do ano passado confiam no nosso trabalho, embora gostaríamos de ter levado todo nosso público que é bem maior do que essa meia centena que lá esteve. Sem falar que o voice over foi feito pelo grande Fernando Waschburger, nosso parceiro em muitos projetos. Por tudo isso, nos sentimos muito felizes por ter sido parte muito importante no sucesso do filme com ad.
Sob o ponto de vista de quem gosta de cinema e durante muito tempo sentiu-se apartado da possibilidade de assistir e sentir uma série de filmes tão belos por falta de acessibilidade, me sinto de alma lavada.  Para mim, a AD é a possibilidade de realizar sonhos que ficavam apertados dentro do meu peito, como a possibilidade de entender e sentir a emoção de filmes de diferentes gêneros, de participar de uma festa cultural brasileira como é o festival em Gramado.
Ano passado, a Tagarellas fez a AD de Colegas, que ganhou o prêmio de melhor filme, e que é uma comédia leve e divertida, um belo filme sem dúvida alguma. A presença de público com deficiência e interessados na AD foi excelente e nos deixou repleto de felicidade em poder proporcionar momentos inesquecíveis para quem lá esteve, pois muitas pessoas iam ao cinema pela primeira vez. 
Esse ano, foi ainda mais especialmente tocante para mim, tanto como público do filme quanto como consultor da AD.  O fato de consolidarmos uma posição no festival tendo um filme audiodescrito pelo segundo ano consecutivo merece ser mencionado, além do que tivemos uma plateia ainda maior do que no ano passado (cerca de 50 pessoas com deficiência). Os ingressos esgotaram em poucos dias e muita gente que gostaria de ter ido assistir, infelizmente não conseguiu vaga. Isso é excelente para demonstra que a audiodescrição tem público sim, e que o argumento de falta de pessoas com deficiência interessadas é uma quimera.
O filme "À oeste do fim do mundo" conta a história de León (Cesar Troncoso) ex combatente da guerra das Malvinas que vive isolado em um posto de gasolina situado em uma estrada quase sem movimento ao pé da Cordilheira dos Andes. As coisas começam a mudar quando Ana (Fernanda Moro) acaba indo parar no posto de León. Cada um deles vive seus dramas de modo solitário, até que de alguma forma os laços criados entre os dois faz com que decidam encarar de frente os dramas dos quais ficaram muito tempo tentando fugir. 
A história é belíssima, repleta de representações imagéticas e poéticas tendo como cenário a imensidão fria, imponente e às vezes árida das montanhas andinas. A atuação de Cesar e Fernanda, além da louvável participação de Nelson Diniz, tornaram tudo ainda mais emocionante em uma obra cujas expressões faciais e os olhares foram fundamentais para o sucesso da trama. Os silêncios e as introspecções dos personagens foram mais eloquentes e perturbadores do que poderiam ser longos diálogos. isso só foi possivel com a qualidade de interpretação dos atores.
As histórias que envolvem solidão, desencaixes e dramas pessoais me tocam muito, pois gosto dessas tramas mais reflexivas e fortes que fogem do lugar comum e da chamada zona de conforto em que nos colocamos muitas vezes.  Gosto muito das histórias que me fazem pensar durante bastante tempo depois de assistir, de ficar com alguma coisa dentro de mim pulsando por conta do modo como me tocou, e isso o filme conseguiu comigo.
O grande desafio era mesmo como traduzir essas emoções eminentemente visuais para as pessoas com deficiência visual. A audiodescritora Marilaine Costa fez um roteiro de AD muito lindo e de qualidade, conseguindo um resultado excelente. O projeto também contou com a supervisão de Bell Machado. Fui um dos consultores do roteiro junto com a Mariana Baierle, e assim tive a chance de acompanhar o processo. Fiquei feliz com a clareza, com a riqueza e com a sensibilidade do roteiro. 
Por todos os motivos apontados acima, para mim foi o projeto mais desafiador e prazeroso que participei como consultor de AD em termos de obra cinematográfica. Para mim, o mais importante seria que o público da AD gostasse e sentisse as mesmas emoções do que as demais pessoas da plateia. Fiquei muito ansioso para verificar qual seria a reação das pessoas diante dessa obra tão visualmente rica.
Quando o filme começou e percebi os comentários da plateia que ouvia a AD, fiquei muito feliz em notar que estavam compreendendo a proposta. Conforme a obra se passava, notava a emoção de muitas pessoas com deficiência visual em cenas quase sem diálogo em que a AD foi fundamental para o entendimento e para transmitir as sensações da película. Algumas vezes em que vi isso acontecer foi inevitável que as lágrimas rolassem felizes pelo meu rosto. Afinal, foi justamente com tudo isso que sonhei a minha vida inteira, encontrar um modo de fazer com que todas as pessoas entendessem e sentissem a arte.
Entrar pela porta da frente, pisando no tapete vermelho do festival também é uma sensação de inclusão que só mesmo as pessoas que passaram por isso sabem como é. Estar em lugares onde muita gente duvidou que poderíamos estar, participar de eventos como o cinema que seria impensável há algum tempo é recompensador. Sinceramente, pensei que levaria muito mais tempo para atingirmos esse patamar, e ver que as coisas estão acontecendo é uma sensação maravilhosa de dever cumprido. Ainda temos muito a fazer, e isso me faz levantar cada dia mais forte para persistir nessa luta.
"À oeste do fim do mundo" comprovou que todo e qualquer filme pode nos trazer emoção e reflexão caso tenhamos acessibilidade e contemplação de nossa diferença. Fico muito alegre em ver que produtoras como a Accorde Filmes tomam a acessibilidade como uma questão prioritária, pois isso ainda é raro, e por isso mesmo digna de muitos aplausos! 
É muito importante que os produtores compreendam que as pessoas com deficiência são um robusto mercado de 45 milhões de pessoas, e que contemplar esse público não é aumentar o custo, mas ampliar os investimentos em aquisição de plateia que vai consumir a obra. A audiodescrição é fundamental para nos dar acesso à arte e a todas as emoções que ela nos possibilita. Portanto, o Kikito vai para a audiodescrição, para todos que participaram da AD do filme e para plateia que lá esteve. 
Meus olhos ainda ficam marejados cada vez que lembro da grandiosidade e quantidade de sensações que tivemos juntos na AD de "À oeste do fim do mundo". Desejo do fundo do meu coração que iniciativas como essa se perpetuem e que cada vez mais pessoas possam sentir a mesma alegria que eu agora sinto. Vida longa à audiodescrição e às parcerias que tornam isso possível, afinal, tudo que é feito e compartilhado junto se torna sempre mais intenso e duradouro.




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