Enquanto circulava pela rua Lima e Silva, lembrei que no
longínquo século XIX o bairro Cidade Baixa foi um importante quilombo e reduto
de negros alforriados. Muito da tradição carnavalesca, e de algumas
características da região da cidade tem a ver com a herança que esse grupo nos
deixou e que ainda está latente.
Atualmente, o bairro é composto por residências de famílias
de classe média que convivem – não muito bem – com a intensa e divertida vida
noturna. São dezenas de bares com as mais diferentes opções gastronômicas,
musicais e de grupos sociais. Adolescentes e jovens porto-alegrenses - dentre
os quais eu mesmo - gostam muito daquela atmosfera de alegria e boa música. É
claro que existem os problemas inerentes como a violência e sujeitos que não
sabem viver em sociedade, independentemente de quais grupos pertençam.
A Cidade Baixa também é conhecida por ter entre seus principais
frequentadores, o público homossexual. Realmente desconheço as razões que
fizeram com que esses grupos se reunissem naquele local, e embora incomode a
muita gente, acho ótimo que essas pessoas se façam presentes nos diferentes
espaços da cidade. Afinal, é preciso marcar posição, ser visto e enfrentar a
resistência da sociedade. Isso é algo que todos aqueles que pertencem a uma
minoria tem de lidar.
Em um determinado momento do trajeto que eu percorria fui
resgatado de minhas reflexões por uma imagem que me chamou muito a atenção. Vi
e ouvi – pelo barulho da bengala – que uma moça cega acompanhada de outra
mulher também circulava com desenvoltura pelas ruas do bairro. Durante umas
duas quadras fomos na mesma direção e pude observá-la e fiquei feliz de não ser
eu o único com deficiência visual a curtir a região.
O mais interessante de tudo, foi perceber que a moça cega e
sua companhia, em determinado momento trocaram um afetuoso beijo na boca e
algumas palavras de carinho, as duas são namoradas – sim, eu ouvi a conversa
delas para saber isso. O que me deixou feliz foi o fato de ter me dado conta de
que a uns anos atrás uma pessoa com deficiência sequer pensava em sair na rua.
Mais ainda, dificilmente é possível ver com frequência pessoas com deficiência que
se declarem gays (assistam ao curta Eu Não Quero Voltar Sozinho), afinal devo
reconhecer que o preconceito seria infinitamente mais forte.
Mesmo assim, aquelas mulheres que não tinham mais do que 30
anos seguiam suas vidas com felicidade, sem se interessar com olhares oblíquos
que em algum momento recebem. Se para um colunista gaúcho pessoas cegas não
podem ser felizes, aquela jovem contraria essa besteira. Não me importa quem
ela seja ou o que ela faça, o fato é que ao ver aquela cena fiquei pensando: como
seriamos fortes se as minorias se unissem ao invés de lutarem sozinhas.
O exemplo do bairro Cidade Baixa que reúne entre seus
frequentadores de ontem e hoje, negros, gays, pessoas com deficiência e outros
tantos grupos minoritários me faz perceber que existem diversos temas em que os
grupos dos “diferentes” poderiam se aglutinar e debater em bloco, como a
questão do preconceito, da justiça social e de formas salutares para
modificarmos o status quo da
sociedade, eliminando as discriminações e construindo no lugar uma sociedade
que exalte o direito de ser diferente.
Por isso mesmo, creio que respeitando as peculiaridades de
cada grupo, podemos sim pensar em uma coesão que nos possibilite dialogar em
torno de uma agenda positiva na luta que travamos contra os destratos daqueles
que se consideram como maioria e desprezam os “diferentes”. Não estou nem me
referindo à militância ou aos movimentos sociais especificamente, mas a ações
individuais, como ativistas que podemos ser em nome do direito de ser como somos.
Não sou negro ou gay, mas como vivo na condição da
deficiência, partilho diversas sensações semelhantes a que essas pessoas
sentem, como se sentir deslocado na maioria das vezes, como viver de alguma
forma tendo que conviver com olhares e comentários desnecessários, além de uma
série de preconceitos e estigmas que não condizem nem um pouco com a verdade
absoluta.
É muito importante que possamos nos colocar no lugar do
outro, dessa forma poderemos tomar aquilo que achamos ser injustiça contra
alguém como sendo uma luta que também é nossa. Assim, poderemos deixar de lado
eventuais divergências em nome de um bem maior que é o nosso direito a ser
singular, a ser diferente, sem que aqueles que se outorgam como maioria tenham
que determinar o que somos ou o que devemos fazer. Não é um brado contra a
maioria, embora eu sempre me pergunte: quem é a maioria? É sim, uma sugestão
para que nós possamos debater algumas possibilidades de unirmos nossas
reivindicações.
Enfim, como cada pessoa possui em si peças de pessoas, como
diria o cancioneiro, não deveríamos nos importar tanto em nos definirmos como
uma coisa só, assim como há negros com deficiência, negros gays, gays com deficiência
ou outras tantas combinações possíveis. Até mesmo dentro desses três grupos que
citei aqui existem outras tantas divisões que muitas vezes prejudicam os
processos de consolidação de seus direitos. Contudo, o que para mim ficou
evidente ao ver aquele casal na rua é que sim, nós podemos deixar de lado as
picuinhas e ao invés de dividir, nos unirmos e somarmos forças em nome do bem
maior que é o direito de poder ser quem se é, pelo direito de ser diferente sem
que isso seja considerado ruim, ou ainda, pelo direito de sermos nós mesmos....
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