Normalmente, o pensamento mais
corrente nas sociedades é de que todas as pessoas com deficiência são iguais,
que tem as mesmas necessidades, que tem personalidades, gostos e desejos
semelhantes. Muitos acham que se conhecem um cego, sabem do que todos os cegos
precisam, e isso está muito longe de ser verdade. Felizmente para a humanidade,
as pessoas são plurais e cada um de nós é um pequeno universo, somos diversos e
até ao inverso.
Sempre refleti sobre isso, mas
dois fatos me chamaram a atenção ainda mais para a pluralidade dos sujeitos.
Recentemente, assisti a uma palestra sobre as questões da homossexualidade e do
corpo como forma de identidade. Também pude finalmente assistir ao filme “Eu
quero voltar sozinho”, onde um adolescente descobre sua sexualidade e percebe
estar apaixonado por outro rapaz, e o mais interessante foi a forma digna,
afetuosa e emocionante como o tema foi tratado na obra. O detalhe é que o
personagem é cego, e foi um dos melhores filmes sobre deficiência que eu já vi.
Recordo-me de uma situação
ocorrida há seis anos, quando uma colega de mestrado estudava sobre “surdos com
síndrome de down”. Em uma das aulas debatendo sobre seu projeto, a questionei
da seguinte maneira: “por qual motivo tu usas surdos com down? Por que não usar
dows surdos?”. Ainda que muitos acreditem que temos uma identidade que nos caracterize
mais do que as outras, é preciso pensar diferente do usual, que somos muito
mais do que “apenas” cegos, surdos, com down, negros, homossexuais ou outros.
Já faz algum tempo que como acadêmico
e como sujeito com deficiência venho desejando estudar ou refletir mais sobre
aquelas pessoas que vivem à margem, ou se preferirem, nas zonas de fronteiras
entre algumas diferenças das chamadas minorias. E as mulheres, os negros, os
pobres ou imigrantes com deficiência? E /se forem tudo isso ao mesmo tempo? E
se forem tudo isso e mais algo que sequer eu citei aqui?
Tenho pesquisado bastante sobre
as marcas culturais com as quais pessoas cegas e com baixa visão se identificam
e que possibilitam a construção de certas identidades que nos acolhem. Mas,
fico sempre desconfiado e atento para que essas identidades não formem um ideal
de pessoa com deficiência visual, um modelo a ser seguido como uma identidade única.
Talvez, muitos podem dizer
apressadamente que isso pareça quase que eu mesmo destruir os castelos de areia
que “criei”, mas acredito que o que temos são possibilidades de identificação,
e não modelos indenitários a serem seguidos como dogmas. Mesmo porque, se
descartarmos aqueles diferentes dos modelos que se imaginam dos “cegos de
verdade”, agiremos exatamente igual aos que condenamos por nos excluírem.
Quando fiz meu doutorado
sanduíche em Barcelona, conheci um rapaz com baixa visão militante no movimento
das pessoas com deficiência da Catalunha. Contou-me dentre tantas coisas
interessantes, que fazia parte de uma comissão específica para tratar sobre os
homossexuais cegos e com baixa visão. Foi a primeira pessoa com deficiência
visual gay – ou vice versa, como preferirem – que eu conheci, não por vontade,
mas por falta de oportunidade.
Além disso, ele relatou as
dificuldades enfrentadas por estar em uma zona de fronteira, pois se tem a ideia
de que sujeitos com deficiência são assexuados – e isso está bem longe da
verdade -, e como um gay que tem uma diferença corporal, se via pouco aceito na
“comunidade”. Assim, ele via-se excluído por ser cego, por ser gay, por ser um
cego gay, por ser um gay cego, quando deveria era ser respeitado por ser ele
mesmo.
Ultimamente, tenho ampliado minha
rede de contatos com sujeitos cegos e baixa visão, e entre eles, conheci direta
e indiretamente pessoas com deficiência visual com orientação homossexual. Tenho
interesse em entender como e a vida dessas pessoas que muitas vezes são multiplamente
mais excluídas do que normalmente já somos. Que estratégias utilizam para lidar
com os desafios que essas situações lhes impõem?
Um exemplo, é que alguns
homossexuais contam que “conhecem pelo olhar” quem é ou não “como eles”, mas e
uma pessoa cega como faz? Uma alternativa muito usada tem sido os aplicativos
de “paquera” para celular, sendo a visualidade o principal fator de contato
entre os usuários, mas, como faz alguém que não enxerga?
Acredito que assim como mostrado
em “eu quero voltar sozinho” as questões sentimentais sejam semelhantes para os
homossexuais que enxergam ou não. O que pretendo trazer para o debate é que muitas
vezes essas pessoas ficam um tanto de fora das discussões sobre os seus
direitos, sobre as possibilidades de aceitação e respeito às suas singularidades.
Como os movimentos de homossexuais e de pessoas com deficiência lidam com essas
questões que estão cada dia mais latentes?
Utilizei esses exemplos para propor
o debate sobre as diferentes características que pode ter uma pessoa cega ou
com baixa visão, não sendo possível falarmos em um “cego modelo”. Também me
interessa tratar sobre aqueles sujeitos que são excluídos por mais de uma
característica, como no caso das pessoas com deficiência visual homossexuais, excluídas
por terem deficiência e por serem gays ou lésbicas. Mais do que isso, excluídas
também, por não se encaixarem em modelos estabelecidos pelas minorias a que
pertencem.
Portanto, é necessário que
exercitemos a hipercrítica e percebamos que pessoas com deficiência excluindo
outras por serem “diferentes” é seguir a lógica da exclusão que tanto lutamos
para que acabe. Devemos agir com o mesmo desprendimento do preconceito que
pretendemos que façam conosco.
Assim, tenho certeza de que esses
temas são muito mais profundos do que as discussões que trago nesse texto. Da
mesma maneira, não tenho respostas para a maioria das perguntas que trouxe
aqui. Convido o leitor para também seguir refletindo sobre essas questões, pois
é subvertendo e dissolvendo a lógica excludente que faremos uma sociedade de
fato inclusiva.
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