Se há uma coisa que tenho de bom é a memória, talvez por
isso, eu sempre me lembre das oportunidades que tive na vida e dos momentos
marcantes proporcionados por determinadas pessoas. Sei que a vida é feita de
ciclos, mas nunca um afeto antigo será substituído por um novo, muito menos
sairei por ai espezinhando o que passou, porque acima de tudo eu tenho
sensibilidade e gratidão.
Em 2005, eu ingressei na UFRGS ainda como calouro do curso
de Pedagogia. Por mais que eu tivesse uma hora a mais para realizar a prova,
pouco ou nada adiantou porque o tamanho da letra era o mesmo e as imagens não
eram descritas. Quando passei a frequentar os diferentes campi, percebi que os
ambientes eram absolutamente inacessíveis. Embora existam leis que determinem a
implantação da acessibilidade, os obstáculos continuam lá passada uma década.
Quando comecei a graduação nessa universidade os materiais
não eram adaptados e eu tinha que me virar. Não havia NADA que proporcionasse acessibilidade
para a permanência de alguém com deficiência no meio acadêmico. E, como
persistente que sou, continuei mesmo assim.
Naquele ano, surgiu o edital chamado Programa Incluir, mas o
conheci apenas no ano seguinte pela televisão. Descobri que a universidade
tinha aderido, mas infelizmente, o professor Hugo Bayer que tanto desejou sua
implementação, faleceu em um acidente aéreo. Pior ainda, os equipamentos de acessibilidade ficaram anos encaixotados
enquanto muitos de nós precisavam deles.
Algum tempo passou e eu até desisti de esperar que tudo
aquilo me beneficiasse. Até que em 2008, concluía o curso e estudava para a
seleção do mestrado que aconteceria naquele período, fiquei sabendo que o
Programa Incluir finalmente passava a atender os alunos. A professora Adriana
Thoma - coordenadora do programa – incentivou-me a ir até lá e ver como as
coisas funcionavam. Estranhei um pouco porque estava acostumado que as
instituições de ensino dificultassem ao invés de facilitar a minha vida.
Meus campos de estudos eram dentro da área da inclusão
cultural, mas não sabia exatamente o que estudar, pois são tantas coisas que
precisam mudar... Queria pensar em algo que fizesse diferença na vida das
pessoas com deficiência, pensando naquilo que elas podem fazer, pensando nelas
não como seres exóticos, mas como sujeitos que tem o direito a viver sua
diferença.
Certo dia, fui até o Programa Incluir e encontrei a
professora Adriana por lá. Convidou-me para uma conversa, e fez a pergunta que
mudou a minha vida: “do que você precisa?”.
Como pessoa com deficiência eu era obrigado a aceitar com muita alegria as
migalhas de acessibilidade que as pessoas me davam.
Mas naquele dia não, ali se pensava no Felipe não como um
defeituoso, mas como uma pessoa que tinha direito a ser como é. Eu nunca tinha
me sentido tão acolhido e bem quisto na minha vida. Passei a ir lá
seguidamente, mesmo quando não tinha materiais para pedir, apenas para estar
naquele ambiente onde eu era bem tratado e que a minha diferença não era
questionada.
E, encontrei meu campo de pesquisas: inclusão com
acolhimento! Mais do que isso, tendo os materiais de estudos e a prova para o
mestrado adaptada, tudo ficou bem mais fácil. E digo com todas as letras que
sem o Programa Incluir eu até poderia ter sido aprovado, mas teria ido ainda
mais difícil do que foi. E eu nunca poderei dimensionar o tamanho da minha
gratidão, pois a vida acadêmica foi, é e será sempre o que eu quero para o
resto da minha vida.
Conclui o mestrado em 2010, e fui aprovado no processo
seletivo para o doutorado nesse mesmo ano, e também por conta dos materiais ampliados
consegui cursar e aproveitar ao máximo todas as possibilidades de
conhecimentos. Afinal, eu tinha acessibilidade aos materiais e sabia que as
demandas que eu solicitasse fossem ao menos avaliadas.
Foi através do Programa Incluir que a audiodescrição passou
a ser fomentada institucionalmente, quando da primeira formatura feita com AD.
Fizeram também capacitações em audiodescrição formando inclusive profissionais
que atuam em diferentes ambitos da universidade. Eis aqui outro mérito, muitos
bolsistas dos cursos mais variados passaram por lá, atualmente trabalham na
área da inclusão e até fizeram disso sua profissão.
Foram incontáveis as ocasiões em que a inacessibilidade arquitetônica
me causou problemas inclusive de ferimentos físicos na universidade. Como da
vez em que a UFRGS “arrendou” o campus central para um congresso sobre saúde, e
tornou o lugar um campo minado para mim. Quando fui reclamar para as diversas
instancias. TODAS as pró-reitorias ficaram com aquele “jogo de empurra” e não
resolveram o caso, enquanto eu era obrigado a fazer curativos por conta dos
ferimentos causados por aquele absurdo.
O ÚNICO lugar onde minhas reclamações sobre falta de
acessibilidade na UFRGS eram ouvidas e havia tentativa de resolução era no
Programa Incluir. Pois nos demais lugares eu era o “cri-cri” ou ainda era
obrigado a ouvir: “não podemos fazer
nada, quem sabe daqui algum tempo“. Acho que eles não se recordam que leis
não se procrastinam, se cumprem. Mais do que isso, prover acessibilidade não é
conceder caridade ou beneficio, mas uma obrigação constitucional.
Gostaria aqui de agradecer e parabenizar a professora
Adriana Thoma por ter coordenado o Incluir por esses seis anos, e por ter
mudado a vida de tanta gente. A gente sabe que nem tudo é perfeito, mas tudo
pode ser relevado com diálogo e afeto, coisa que nunca te faltou; Obrigado por
ter feito a pergunta que mudou a minha vida e por ter ficado à frente desse
programa de vanguarda e que sempre nos acolheu tão bem, pensando na gente como
pessoas e não como números.
Foi também através do Incluir que fiz vários amigos,
Mariana, Rafael e Ariane, meus queridos amigos e “colegas” de baixa visão. Assim
como, Fabiana, Bianca, Thayse e Liliane, foram amigos que encontrei por lá. E
se não fosse o Incluir, talvez eu nunca os teria conhecido. Pode ser que eu
tenha esquecido de algum fato ou pessoa, mas ao contrário de outrem, não é um
apagamento de memória intencional, mas fruto de algum lapso nesse momento.
No dia 5 de Agosto de 2014 foi inaugurado o Núcleo de
Acessibilidade e Inclusão da UFRGS, assumindo as funções do Incluir. Espero de
coração que sejam seguidas as políticas de acolhimentos das pessoas e que
tenhamos nossas necessidades supridas. Espero que esse departamento conte com
profissionais capacitados para atuar na área e que as pessoas com deficiência
atendidas sejam chamadas para construir essa proposta nova.
Sei que todos os esforços serão feitos no sentido de remover
as barreiras atitudinais e arquitetônicas na universidade. Afinal, há mesmo
muito trabalho a fazer ainda. Logo irei terminar o doutorado e sair da UFRGS,
mas espero que este núcleo possa ajudar a tantas outras pessoas com deficiência
que ingressam na universidade a se sentirem acolhidas e que sejam dadas as
condições de permanência a todas elas, contemplando suas necessidades.
Porém, é como eu disse antes, um afeto antigo jamais será substituído
e em tempos de tantas mudanças, o importante é olhar para frente sem esquecer
que houve um passado. E se esse texto for lido hoje ou daqui dez anos, gostaria
de expressar todo meu carinho e gratidão pelo Incluir e por todas as pessoas
que o construíram. E enquanto a minha luta pelo acolhimento prosseguir, uma
chama do Incluir continuará acesa.