Um espaço para exposição de minhas ideias e percepções de mundo, debatendo dentre tantos temas, sobre as questões relacionadas às pessoas com deficiência visual, acessibilidade e inclusão. Não espero apresentar soluções, mas ser provocativo e pôr em xeque as certezas
sexta-feira, 28 de junho de 2013
Olhares ganhando o mundo!
O documentário “Olhares” (2012)_ agora está disponível online para acesso em qualquer parte do mundo. No filme, pessoas cegas e com baixa visão contam suas experiências no acesso ao teatro, exposições, cinema, literatura, música e entretenimento.
A obra conta com audiodescrição – recurso de acessibilidade que permite acesso a pessoas com deficiência visual – e legendas – que se destinam ao público com deficiência auditiva. Trata-se de uma produção independente, produzida em caráter acadêmico e sem qualquer tipo de patrocínio. A direção, roteiro e produção são de Felipe Mianes (historiador e doutorando em Educação pela UFRGS) e Mariana Baierle (jornalista e mestre em Letras pela UFRGS) – ambos com deficiência visual.
Estima-se que “Olhares” já tenha sido assistido por mais de mil pessoas em eventos diversos, tais como: II Seminário Nacional de Acessibilidade em Ambientes Culturais na UFRGS, 6ª Primavera dos Museus (Salvador/BA), Mostra de Curtas-Metragem sobre a Temática de Deficiência da Fundação Liberato Salzano (Novo Hamburgo/RS), Feira do Livro de Novo Hamburgo/RS, Secretaria de Educação do Estado do RS, Santander Cultural (Porto Alegre/RS), Sala Redenção de Cinema Universitário da UFRGS, disciplinas da Faculdade de Educação da UFRGS, cursos de formação de professores e palestras na área da acessibilidade. Foi veiculado ainda na TVE-RS, canal de televisão aberta para todo o Rio Grande do Sul.
Segundo Mianes, o objetivo do trabalho é dar voz às pessoas com deficiência visual, destacando suas potencialidades na relação com o universo artístico e cultural. “Queremos mostrá-las como protagonistas de suas trajetórias de vida, para além dos estereótipos e das restrições”, afirma ele.
Desde os entrevistados até os diretores de Olhares tem diferentes graus de deficiência. Mariana Baierle comenta que ainda existe a ideia de que a pessoa com deficiência visual é apenas o cego. “No documentário buscamos dar espaço também aos indivíduos com baixa visão (aqueles com acuidade visual inferior a 30%), que possuem peculiaridades e representam a maioria entre o público com deficiência visual”, afirma ela.
É apenas de inclusão que precisamos? O que seria realmente a inclusão? O documentário convida à reflexão e ao debate sobre essas e outras questões trazidas no filme.
Para palestras, cursos, exibições públicas do filme ou consultoria em acessibilidade, entre em contato com os diretores através dos blogs: www.arteficienciavisual.blocspot.con ou www.tresgotinhas.com.br.
Para assistir “Olhares” acesse:
http://www.youtube.com/watch?v=GGgcBL6rRVE&feature=youtu.be
quarta-feira, 12 de junho de 2013
A primeira bengala a gente nunca esquece
Uma das primeiras perguntas que as pessoas me faziam quando sabiam que eu tinha deficiência visual era sobre o fato de eu não usar bengala branca . Na época não dei muita importância ao fato. Lembro que achava até a questão um tanto irrelevante, dado que eu vivia uma fase de indiferença com minha deficiência, e que quanto mais "normal" eu fosse tudo seria melhor. Porém, eu nunca tive medo, desprezo ou rejeição ao uso da bengala - como alguns casos que eu conheço -, apenas não acreditava necessitar dela.
Pouco tempo depois, a vida me mostrou que a aceitação e o ativismo em torno das causas da deficiência era o caminho certo a seguir. Ao começar a conviver e a estudar sobre a deficiência visual, passeia a observar como essas pessoas usavam suas bengalas, notando claramente as dificuldades que tinham, mas também a desenvoltura com que a usavam na maior parte do tempo.
Por conta de meus trabalhos de mestrado e depois de doutorado, conheci um pouco da parte teórica sobre orientação e mobilidade para cegos, e acabei descobrindo que era muito usada por pessoas com baixa visão, como eu por exemplo. Soube até que existem diferentes tipos de bengalas e que há algumas para serem usadas em festas, vejam só! Sim, ao contrário do que muita gente pensa, a galera cega e com baixa visão adora uma festinha ou eventos sociais.
Com a continuidade das minhas pesquisas e de minha inserção no trabalho de audiodescritor, fez com que meu contato com bengalantes ficasse cada vez mais constante - felizmente. Tanto que, até escrevi um texto chamado "O badalar das bengalas" em que relatei a alegria que sentia toda vez que ouvia seu "badalo" bem característico. A sensação que me arrebata é a de não me sentir sozinho, como se eu me sentisse "em casa" por estar perto de alguém como eu.
A bengala branca é uma das marcas que mais caracterizam as pessoas com deficiência visual, é como um símbolo, um ícone, diria até que um estandarte. No entanto, durante algum tempo não desejava ter uma para mim, ainda que me identificasse com o que ela representa e com os seus usuários.
Só em 2012 comecei a achar interessante a ideia de comprar a minha própria bengala, para a realização de meus estudos ou para usar em viagens em que estivesse sozinho ou na necessidade de me livrar de algum embaraço. Percebi que a bengala ajudaria as outras pessoas a me identificarem como alguém com deficiência, o que muitas vezes é mais seguro e confortável.
Depois de um ano pensando, resolvi ter minha própria bengala. Minha amiga Mariana Baierle me ajudou nessa tarefa, já que ela usa bengala e durante bastante tempo me incentivou a fazer o mesmo. Além é claro, da questão simbólica de ir adquirir o produto com a minha "irmã mais nova" e companheira de baixa visão.
Poucas horas depois eu sai na rua pela primeira vez ostentando minha bengala. Eu precisava viver aquele momento sozinho e isolado com meus pensamentos, e foi emocionante! Andar com a bengala foi para mim como reaprender a caminhar. Talvez por isso, me senti como um bebê que dá seus primeiros passos. Senti como se tivesse me libertado de muitas amarras que teimavam em me prender.
Me sinto feliz por ser um novo aprendizado a cada instante, e o que antes eu queria esconder, agora faço questão de mostrar. Essa nova criança que pulsa em mim não tem medo do fracasso ou da troça alheia, afinal, aconteça o que acontecer minha bengala sempre mostra que o importante é seguir em frente, pois ela nunca me guiará para trás.
Uma das coisas que me deixou impressionado foi o comportamento das pessoas comigo. Quando passei em uma avenida repleta de pedestres as pessoas abriram alas para mim como se eu fosse um "pop star", mas se eu estivesse sem a bengala eu seria ignorado, ou pior, muitos me atropelariam sem dó. Muitas pessoas ficavam me olhando como se eu tivesse algum problema grave, mas eu prefiro pensar que me olhavam assim por inveja da minha bengala.
O certo é que me livrei de situações que antes me deixavam bastante tenso, como atravessar uma avenida movimentada sem ajuda (quando se pede ajuda sem bengala as pessoas simplesmente te ignoram). Quando sabia que era perigoso, eu ficava com receio e tomava um milhão de cuidados. Agora, basta eu parar com minha bengala no meio-fio da calçada que logo aparece alguém para me auxiliar.
É verdade que eu perco um pouco da minha liberdade e sossego, na medida em que eu sou abordado inclusive em ocasiões em que eu não gostaria de ser incomodado. Como estou aprendendo a andar com a bengala, caminho mais devagar, o que para um sujeito ansioso como eu é um pouco complicado.Sei que esse é um processo transitório e que rapidamente irei me adaptar, e por isso não acho que seja uma dificuldade significativa.
Por outro lado, fico feliz ao perceber que há bastante gente disposta a ajudar e a ter solidariedade com quem sequer conhece. A maioria das pessoas que encontrei sabiam como deveriam me guiar. Isso é uma amostra de que muitas pessoas já estão minimamente preparadas para lidar com pessoas cegas e com baixa visão, algo que uma atrás seria bem mais difícil. Logo, os esforços que temos feito no sentido de disseminar as ideias sobre acessibilidade começam a dar frutos.
Enfim, não me refiro à bengala como um mero objeto, pois ela não é só um mero instrumento de mobilidade. Algumas pessoas ainda a chamam de "varinha", o que parece tosco em um primeiro momento. Mas, se pensarmos bem, não é tão errado assim, já que a bengala branca é como uma "varinha mágica", que abre muitos caminhos e fazer coisas fantásticas por todos nós. Mais do que mobilidade e segurança, ela produziu em mim a "mágica do acolhimento". Para muitos a bengala branca é o ícone da limitação, para mim é o ícone da libertação.
Descrição da foto.
No centro da foto, da direita para a esquerda, Felipe Patrícia e Mariana posam lado a lado e sorridentes. Felipe e Mariana estão com bengalas brancas à sua frente. Ao fundo, uma sala de aula com cerca de vinte cadeiras vazias.
Fim da descrição
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Eu estou curado!
Durante muito tempo da minha vida procurei não olhar nos olhos da minha deficiência visual. Tratava do assunto com indiferença, como quem tenta "varrer para debaixo do tapete" aquilo com o que não sabe conviver. Eu, familiares e amigos vivíamos num "faz de conta" em que fingíamos que tudo estava normal e que não havia nada de diferente comigo, obviamente uma quimera.
Os bons pais sempre querem o melhor para os filhos. Como os meus são excelentes, buscaram me fazer ter muita autonomia e a encarar tudo de peito aberto - o que demorei um pouco para aprender. Tratar alguém com deficiência desse jeito, naquela época era considerado "prafrentex" demais e lembro que muita gente achava que eu devia ficar escondido em casa como um peixinho no aquário. Ufa, eles não fizeram isso! Me tratavam como uma "criança normal".
Eu sempre respeitei e admirei o modo como eu fui criado, mas algumas coisas foram um pouco difíceis e por caminhos tortuosos. Para eles, eu seria mais feliz se ficasse curado e fosse "normal". Isso me trouxe algumas sensações péssimas e uma meia duzia de histórias engraçadas. Quando eu era criança não entendia muito bem tudo aquilo, mas sabia que eu parecia ter "algo errado".
Quando se tem alguma deficiência até as pessoas querem encontrar uma "cura" para ti a todo custo. Elas sempre conhecem "alguém que pode curar tua doença" ou pior "conhecem um remedinho que é batata... receita da vovó". Nem vou mencionar aqui que quase todo mundo me pergunta se "tem uma cirurgia que te cure? um óculos não resolve? já consultou outros médicos ou tratamento no exterior? Isso daria muito pano para manga e não é o meu foco aqui.
Eu respeito as pessoas que tem fé no plano transcendental e seus tratamentos possam me fazer enxergar normalmente, mas me dou o direito de não gostar muito desse tipo de coisa. Também deixarei de lado os "pastores e missionários" que me param na rua dizendo que esse "defeito" que eu tenho é "falta de jesus", quer dizer então que deficiência é pecado? Se eu disser o que eu penso dessa gente, processo na certa. Porém, muita gente se sente inferiorizada e triste com esse tipo de estigma.
Pior que isso, são os sujeitos que deliberadamente se aproveitam da fé alheia. Inventam histórias mirabolantes de gente que levanta da cadeira de rodas e sai andando ou cegos que voltam a enxergar. Fazem "consultas", "remédios", infusões, chás e tantas outras coisas. Dizem que tem o dom dado por Deus, mas o contraditório é que a maioria cobram e caro para ser o "emissário do Senhor".
Os pais, avós irmãos e amigos de quem tem deficiência não fazem ideia da "tortura" que é para a maioria de nós - ainda mais quando crianças - ir semanalmente aos curandeiros de plantão. No meu caso, ainda tenho muito vivo todo o sofrimento que eu sentia. Eu e meus pais íamos sempre cheios de esperanças de que tudo daria certo, e ao fim de tudo, era só um acumulo de decepções e desencantos.
Ainda trago na memória a sensação de ser constantemente "preterido" por Deus, pois tanta gente conseguia o que queria e eu não. Muitas vezes me perguntava: Porque comigo? o que eu fiz de tão errado para não dar certo? Além é claro, da sensação de desamparo e de ficar ainda mais triste vendo a decepção dos meus pais.
Muitos foram os métodos e tratamentos mirabolantes para curar minha baixa visão, foram tantas que muitas eu nem me lembro mais. Já tomei suco de couve em jejum, chá com sabor de sabonete, isso quando não tinha o tradicional banho de arruda ou de passarem um galo preto no meu corpo. Isso tudo parece meio estranho, mas a gota d'água que me fez dizer chega foi quando eu tinha uns vinte anos, período em que eu tinha cabelos até a altura dos ombros com lindos cachinhos.
O tratamento consistia em uma compressa colocada nos olhos cujos ingredientes principais eram ovos de galinha e argila derretida em chá de camomila. Pois bem, eu fiz isso durante um tempo - contrariado é claro -, até que um dia a tal mistura vazou e encharcou meu lindo cabelo. Resultado, fiquei fedendo a ovo por umas duas semanas (não, nem banho adiantou).
Essa foi uma parte engraçada de todo o drama que eu vivia, mas que me fez botar um ponto final naquela maluquice toda. Eu já estava realmente cansado de tentar de tudo e sempre dar errado, decidi que era o fim do meu calvário da cura.
Pouco tempo depois, minha vida tomou outros rumos e eu passei por uma série de discriminações e preconceitos quando ainda tentava alavancar a minha carreira como professor de história. Depois de momentos bem difíceis em que eu achava que deveria mesmo desistir de tudo, comecei a refletir e pensar sobre o que eu poderia fazer para me reconstruir e fazer a minha parte para que ninguém mais passasse o que eu passei. Descobri o amor pela vida acadêmica e que era a docência nesses espaços que eu queria para o resto da vida, mais que isso, ser sempre um pesquisador-ativista.
Depois de tantos percalços, percebi que sou feliz por causa da deficiência, e não apesar dela. Se eu tenho uma carreira em ascensão e de relativo sucesso como acadêmico e como audiodescritor consultor, devo isso a ela, se tive a chance de ter um apartamento, de ter um casamento tão bom, de viajar, de ter amigos queridos que eu amo tanto, foi por conta do que a baixa visão me proporcionou.
Nem sempre foi assim, mas atualmente trato a deficiência como um dom - tomando emprestado o conceito de Borges - adquirido e construido. Não me sinto mais defeituoso, unicamente caracterizado como alguém que tem olhos que não enxergam bem. Não me vejo limitado ou amarrado ao fracasso, mas sim, livre para um mundo de possibilidades. Os problemas e as dificuldades existem sim, mas quem não as têm?
Depois de tanto tempo, acabei descobrindo que não foi nenhum curandeiro, pastor, padre, nenhum chá, infusão ou compressa de argila com ovo de galinha que fez esse "milagre". Sim, EU ESTOU CURADO! Me libertei das correntes dos estereótipos, estigmas e baixas expectativas. Afinal, nem a baixa visão ou o céu são meus limites. A baixa visão não foi o meu fim, mas um belo e venturoso começo...