sábado, 21 de setembro de 2019

LUTE POR VOCÊ


Hoje é Dia da Luta Pelos Direitos das Pessoas com Deficiência, e é bem óbvio dizer que no atual contexto brasileiro o simples ato de existir é uma luta para quem pertence a uma minoria.
Por isso, eu proponho outra reflexão, quiçá um conselho para quem é ou tem proximidade cum uma pessoa com deficiência. Pensaria na palavra “luta” num sentido mais individual, mais interessante - ou interessado - sobre o tema.
A aceitação da condição de deficiência é o que faz toda diferença. E aceitar ser quem você é dói, fere, sangra e cura, tudo isso ao mesmo tempo. O tamanho da cicatriz da não aceitação de si mesmo vai depender de quanto tempo isso pode durar e o tanto de danos que isso vai lhe causar.
Eu sou prova disso. Tenho 37 anos e levei pelo menos 25 anos para conseguir olhar nos meus próprios olhos e descobrir que eu sou diferente.
As sequelas disso eu fui percebendo ao longo do tempo, quando parei de negar que a atrofia não tinha sido só no olho esquerdo, mas na vida que tive comparada com aquela que hoje vejo que poderia ter tido.
A visão opaca que o olho direito com catarata e meu eu tivemos da vida todo esse tempo deixaram de ver o que parecia tão óbvio: é preciso lutar POR - ou contra - si mesmo, caso você queira realmente ser quem quer ser.
Usando os versos de Lupicinio Rodrigues, na canção “Esses moços” eu diria a você nesse dia de luta que ao negar sua cegueira ou baixa visão “saibam que deixam o céu por ser escuro/ e vão ao inferno à procura de luz”. Assim como o cancioneiro, eu digo a essas moças e moços que aceitação da deficiência é a primeira, mais premente e difícil batalha que você precisa enfrentar.
Ou, como Lina Meruane escreveu em “sangue no olho”, descobriu quem era de verdade no dia em que notou que não se enxergava mais no próprio espelho. E isso tem a ver muito mais com uma luta de guerrinha feito pelo exército de um homem só, cada um com seu eu interior numa guerra cotidiana para salvar-se de si mesmo.
Antes de lutarmos pelos nossos direitos precisamos saber aceitar quem de fato somos. Afinal, como diz Gilberto Gil “que contradição/ Só a guerra faz/ Nosso amor em paz”. Lute por rampas, por lupas, por audiodescrição, mas principalmente: lute por você.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Meu passado sem rosto


Sempre procuro escrever sobre as coisas boas que a deficiência me proporciona ou sobre os direitos que temos a reivindicar. No entanto, dessa vez me dou o direito de falar da exceção, sobre algo que me entristece e que confesso sentir falta diante de minha baixa visão.
Todas as vezes que tento lembrar as pessoas ou lugares, as recordações são sempre borradas ou desfocadas, isso quando as tenho. Não consigo gravar a fisionomia das pessoas por mais que tenham sido importantes na minha vida, mas se fico algum tempo sem conviver perco essa referência como quem perde um pedaço de si mesmo.
Dizem que as redes sociais vieram com a função de unir as pessoas. Não duvido disso, mas acho que comigo e com meus “colegas” cegos e com baixa visão isso não acontece muito bem quando o assunto são os amigos e conhecidos do passado.
 Sei de gente que se reencontrou com amigos de infância e de colégio através das redes sociais, e que conversam seguidamente até hoje. No entanto, essas pessoas sabiam o nome e conseguiam associar às fotos que estavam vendo, o que para nós é impossível. Imagine ter um amigo chamado João da Silva, existem centenas, como saber qual deles é o meu amigo sem ver a foto ou lembrar de algum detalhe físico? Para mim, essas redes não tem lá muita serventia.
Fico me questionando o quão bom seria poder ter claro no pensamento a visualidade de pessoas e locais marcantes, uma coisa até comum para quem enxerga bem.
Coisas que parecem tão simples podem nos deixar bastante chateados. Exemplo disso, não ter a menor ideia de como era a professora que me ensinou a ler. Meu passado não é nítido, e os sentimentos de saudade, arrependimento, alegria e outros, não tem uma imagem específica na qual se amparar. E isso é realmente muito angustiante.
Sempre penso em como deve ser legal estar andando na rua, tomando um café ou no estádio de futebol e de repente rever aquele amigo que não encontrava a mais de uma década. Bater um papo, relembrar o passado e poder dizer que o cara tá velho ou bem conservado. Isso eu nunca terei.
Por mais que a pessoa lembre de mim e me chame - como já aconteceu em uma viagem certa vez - eu não consigo reconhecer de quem se trata. Garanto que não é por mal, não se trata de desdém ou de esquecimento, mas sim, de literalmente não conseguir ligar o rosto a quem é a tal pessoa.
É realmente uma coisa meio estranha de viver, pois eu lembro os fatos com detalhes, mas não guardo qualquer imagem que os represente. Como o da moça que eu era afim na época de Ensino Fundamental, e por mais que fossemos bem amigos, eu me esqueci de pedir o endereço e telefone no dia da formatura, e nunca mais soube dela.
Ou então, do amigão que aprontava comigo na escola e que uma vez fingimos ter uma baita briga só para adiar a prova de matemática. E, depois de ter cumprido a missão e levado uma monumental bronca da diretora e dos nossos pais, a gente saiu rindo e abraçados, e a história virou meio lenda na escola... Se essas pessoas passarem por mim na rua hoje, por mais que eu queira contar as aventuras que tenho feito e a vida feliz que tenho levado, ou elas me reconhecem ou isso não acontecerá.
Por outro lado, eu posso até ser um sujeito de personalidade um tanto forte, mas se há uma coisa que não gosto é deixar coisas ruins para trás, ou melhor dizendo, não curto ficar brigado com ninguém, ou que alguém se chateie comigo por longo tempo. Claro que há exceções.
Contudo, sempre pensei em tentar ao menos “zerar” algo ruim que eu tenha feito para alguém, procurar a pessoa e por mais tempo que tenha passado, me desculpar e dizer que eu não sou o mesmo cara nervosinho, radical, tímido tido como esnobe ou que tantas vezes se escondia das coisas. Queria deixar tudo as claras caso algo tenha ficado de errado, mesmo que talvez ainda assim a pessoa nunca mais queira contato comigo. Então, embora sejam bem poucos nessa condição, como fazer isso se eu nem sequer lembro que rosto elas tem?
Penso também, nas inúmeras festas que eu fiz, nos diversos amigos que ficaram para trás e que ainda hoje se nos reencontrássemos tudo seria como antes, uma alegria enorme. Sinto saudade de tanta gente boa com quem já cruzei pelos caminhos da vida e que gostaria de agradecer, mas como se suas faces estão apagadas da memória?
Sinto como se meu inventário de sentimentos, percepções e lembranças fosse cada vez mais rico e ao mesmo tempo pobre. É rico, pela quantidade de coisas que já fiz e de pessoas que já conheci. E pobre, pois parece que quanto mais o tempo passa as lembranças vão ficando sem cor e sem detalhes, como se eu tivesse um álbum de fotos que se esfarelasse diariamente. Como se fosse um punhado de areia fina que eu sempre tentasse guardar, mas que escapa por entre os dedos.
Em muitos momentos me acho um tanto incompleto, alguém com presente futuro, mas com um passado pela metade. É difícil dimensionar exatamente o que se sente ao tentar recordar, mesmo que seja apenas um traço físico de alguém e não conseguir. O que eu tenho é um passado sem rosto, no qual as lembranças se misturam umas com as outras.
Nunca consigo guardar por muito tempo as expressões, os semblantes e diversos detalhes das pessoas que passam pela minha vida. Como eu sempre digo, “o que os olhos não vêem o coração também sente”, é por isso que o passado pode apagar os rostos, mas sempre manterá acesa a chama de uma sincera saudade.

Felipe Mianes

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Onde está minha estrelinha de natal?


Quando chega o final do ano letivo nas escolas é tradicional que aconteçam as apresentações das crianças com belas mensagens natalinas, geralmente incentivando amor, compaixão e empatia.
As crianças se divertem muito, trabalham em equipe e passam bastante tempo dos últimos dias de aula ensaiando para os “espetáculos” a serem realizados. Os corredores viram quase a casa do Papai Noel, com uma farta e colorida decoração natalina. Os pais ficam sempre às voltas com a compra de fantasias, materiais para as apresentações e outras exigências feitas pelos professores.
Quando chega o tão esperado dia e todos os nossos pequenos se alternam em lindas apresentações, com muitas luzes coloridas, efeitos visuais, fantasias, coreografias e um show que enche os olhos de quase todos com lágrimas pela “fofura” que é ver seu filho sendo artista por um dia.
Leitor, volte até a ultima frase e veja onde eu escrevi “quase todos”, será que isso foi proposital? Seriam “quase todos” porque alguns são muito “durões” e não se emocionam com tudo isso? A resposta é: não! E há uma razão para isso, que provavelmente você jamais percebeu antes de ler esse texto.
Vou lhe fazer uma pergunta, ainda que seja meramente retórica, pois sei a resposta. Você já parou para pensar que a mãe ou o pai do colega do seu filho podem ser cegos? E já se perguntou como eles fazem para entender e sentir todas aquelas imagens que você fotografou e filmou no celular? Pois é, a maioria das pessoas é como você e nunca se deu conta disso.
Nós que somos pais com deficiência visual ficamos numa situação bastante difícil e de desvantagem, para não dizer que somos discriminados e esquecidos nessas ocasiões. Enquanto todos os pais veem suas estrelinhas de natal brilhando no palco, nós nem fazemos ideia de onde elas estão, que roupas estão vestindo ou que coreografias estão fazendo.
As escolas não se preocupam com a nossa deficiência visual, não se importam se nós estamos enxergando ou não tudo o que está acontecendo. Fosse algum tempo atrás eu até entenderia, mas hoje com a quantidade de recursos de acessibilidade e tecnologias que temos, como a audiodescrição, é inaceitável e frustrante ir a qualquer apresentação na escola e ver a alegria dos outros pais ao mesmo tempo em que nós ficamos lá num cantinho sem saber de nada do que está se passando.
As mensagens natalinas nunca serão completas nem verdadeiras enquanto as escolas e os demais pais não pensarem naqueles que tem alguma dificuldade para acompanhar esses momentos tão importantes. De que adianta falar de amor e empatia se eu fico perdido sem que sequer alguém da escola se disponibilize a descrever o que está acontecendo? Como podemos nos emocionar se não sabemos como tudo está sendo feito?

Para ser sincero, essas cerimônias me deixam com muitas emoções à flor da pele, fico triste por não poder ver – no meu caso com os ouvidos – a apresentação da minha filha, fico com raiva e revolta por perceber que todos dizem querer um mundo melhor e mais inclusivo, mas nem param para pensar na gente, fico com gana e com muita vontade de continuar resistindo e mostrando que nós que não enxergamos existimos e que fazemos parte do mundo, e que precisamos ser respeitados.
Se coloque no meu lugar e pense como seu filho se sentiria sabendo que todos os outros pais estão acompanhando e se emocionando com o show, menos você. Eu tenho certeza que isso causa uma grande tristeza nas crianças com pais cegos ou com baixa visão, pois elas sabem que sem audiodescrição seus pais não poderão sentir toda a alegria e dedicação que elas emanam com sua performance.
Ou então, você que tem filhos cegos ou com baixa visão pense no quanto essas apresentações de natal são realmente importantes para eles, afinal de contas, provavelmente é tudo tão visual que não valerá a pena e não fará nenhum sentido sua participação, a não ser que ela seja adequadamente incluída e respeitada dentro de sua diferença e possibilidades.
Por fim, convido o leitor ou a leitora a se colocar no nosso lugar de verdade e repensar sobre essas situações. Creio que não são as peças de teatro ou as músicas de natal que tornam o mundo um lugar melhor.
O que pode fazer com que nossas vidas tenham mais amor e felicidade são as ações que tomamos com relação a nós e aos outros, amando ao outro como a nós mesmos, assim já dizia o aniversariante. Por isso, conceda um presente a si mesmo, pense naqueles que são diferentes de você, que tem necessidades e peculiaridades diferentes, cores e orientações diversas, pois se é verdade que há um pouco de nós em cada um, você também é um pouco cego, e isso é bom, acredite!

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Dor

Dor
Sentimos intransitivo.
Sempre de mãos dadas comigo.
Sombra onde encontro meu abrigo.

Dor
Minha sina de Prometeu.
destino que não se cumpriu.
Felicidade que em mim morreu.
Ou será que um dia existiu?

Dor
Faz meu pretérito mais que imperfeito.
A ti eu tão cativo me assujeito.
Sem presente nem futuro,
Vago na vereda sempre escura.
Sem rumo e sem recanto.
Para minh’alma sem descanso.

Dor
Concedeu-me tão belos sonhos.
Para esmigalhar cada esperança.
Troçando de cada tropeço.
Como quem se alimenta de si mesmo.

Dor
Hei de viver e fenecer contigo.
Já não sei és tu quem me procura,
Ou se eu que te persigo.




quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Felipe Mianes: Sessão “Todos” na Mostra Gaúcha de Gramado

Felipe Mianes: Sessão “Todos” na Mostra Gaúcha de Gramado: Sessão “Todos” na Mostra Gaúcha de Gramado    Sinopse: Um historiador viaja por várias cidades do Brasil e exterior em busca de  ...

Sessão “Todos” na Mostra Gaúcha de Gramado



Sessão “Todos” na Mostra Gaúcha de Gramado  

Sinopse:
Um historiador viaja por várias cidades do Brasil e exterior em busca de  resposta a uma pergunta: o que é acessibilidade? Acompanhando a trajetória de Felipe Mianes, que tem deficiência visual, vamos conhecer caminhos acessíveis e caminhos com muitas barreiras. Vamos cnhecer o que pessoas com e sem deficiência pensam sobre temas como diversidade humana, educação inclusiva, cultura e tecnologias. Todos é um filme sobre pessoas e suas  diferenças.
Direção: Marilaine Castro da Costa e Luiz Alberto Cassol.  

Serviço:
Sessão do documentário “Todos” na Mostra Gaúcha do 45º Festival de Cinema de Gramado
Data:  21/08, segunda-feira.
Horário: 14h
Com audiodescrição, legendas descritivas e Libras.
Endereço: Teatro Elisabeth Rosenfeldt (Rua São Pedro, nº 369, Centro,  Gramado)

Haverá transporte do festival, com saída pela manhã e retorno após a sessão. Os interessados devem se inscrever enviando nome completo e RG, até as 20h do dia 19/08, para o  e-mail: doctodos@gmail.com    


VAGAS LIMITADAS


         


Descrição da foto:  No Museu da Batalha, Felipe toca uma escultura. Está usando fones de ouvido.


domingo, 2 de abril de 2017

Maysando

Pesadelos esculpidos.
Por verdades desesperadas.
O que de pior tem acontecido.
É viver isso quando acordada.

Me recordo do acordo.
Que fizera comigo mesma.
Suprimir o sorriso bobo.
Fazer um ode à minha tristeza.

Em águas turvas e não pacíficas.
Navego sempre à deriva.
Da felicidade, sequer uma brisa.
O meu descanso é sair dessa vida.

Repouso na tormenta.
Sigo mesmo tendo fenecido.
Cantando o que poderia ter sido.

Amando demais, sofrendo demais.